Correio do Minho

Braga, terça-feira

- +

E a “envergadura humana” não conta?

1.758.035 votos de confiança

Banner publicidade
E a “envergadura humana” não conta?

Ideias

2023-01-25 às 06h00

Pedro Tinoco Fraga Pedro Tinoco Fraga

Há uns dias, nas partilhas frenéticas das redes sociais surgia uma frase que era atribuída (julgo que de forma absolutamente ignóbil) ao cientista social, investigador, escritor e cronista António Barreto que referia “não haver comparação entre a envergadura intelectual e académica das principais figuras de Salazar com as fornadas de aparelhistas fabricados nos ISCTEs e no Largo do Rato, sem qualquer obra ou currículo visíveis”.
Nesta minha pequena crónica irei assumir que tal frase não foi escrita por António Barreto, mas sim que se trata de algo cuja circulação frenética chegou a alguns milhões de portugueses, na perspectiva de … até um homem que algures no tempo era considerado de esquerda tem hoje uma afirmação deste género reconhecendo a estirpe intelectual dos governantes no tempo da ditadura salazarista.
Para primeiro ponto convém não esquecermos que estamos a falar de uma… ditadura.
Usando por momentos a mesma bitola de quem iniciou a circulação frenética desta frase, não tenho (usando a referida bitola, frise-se) e julgo que ninguém terá, qualquer dúvida que muitos dos regimes torcionários por esse mundo foram geridos por pessoas de grande envergadura “intelectual e académica” e que muitos dos seus seguidores tinham também a tal envergadura de que esta frase fala. Acho que não custará a acreditar que nos governantes da Itália de Mussolini, da Rússia de Estaline, do Camboja de Pol Pot, da Venezuela de Maduro, da Espanha de Franco, da Argentina de Videla, e no limite, da Alemanha de Hitler, existiriam pessoas brilhantes em termos intelectuais e académicos. A validação dessa existência e desse (eventual) brilhantismo intelectual e académico não pode no entanto encobrir algo muito mais importante, que é a (falta de) dimensão humana deste grupo de ditadores, no qual se incluía também essa figura/nota de rodapé da história da Europa que é Oliveira Salazar. Mas, direi mais : não é só a falta de dimensão humana mas também a falta de qualquer princípio de humanidade e de qualquer conceito de solidariedade que não a que vinha dos chás de caridade da Srª D. Gertrudes Tomás.
Como português, partilho o desencanto que se percebe na frase, mas isso não nos deve levar à perda absoluta da realidade e a fazer aquilo que na prática se traduz na normalização de um regime politico e de um presidente do Conselho de Ministros (Oliveira Salazar) que era intelectualmente básico, sem qualquer visão de Europa além de Badajoz (ao contrário do ditador Francisco Franco em Espanha) e, fundamentalmente, um politico de mão de ferro, atropelando diariamente as mais básicas liberdades individuais e grupais.
É este o risco da conversa de café e que infelizmente vai fazendo gradativamente o seu caminho no nosso país. A divulgação massiva deste tipo de frases é o maior favor que se pode fazer à reinvenção/ reescrita histórica que está em curso, tentando normalizar o que efectivamente não é normal : um ditador é e será sempre um ditador, pequenino e intelectualmente básico. O facto de Oliveira Salazar ter sido professor catedrático pode-lhe conceder estatuto e envergadura como transmissor de conhecimentos de Economia, mas não lhe dá estatuto nem envergadura académica, pois ser académico de envergadura é muito mais do que isso.
Um dia destes alguém me dizia : no meu clube (da pessoa que mo dizia, sendo que neste caso coincide com a minha opção clubística) não vejo alternativas em termos de mudança de direcção/rumo/presidente pois acho que quem vier será ainda pior. Pode parecer até estranho ou mesmodemasiadamente básico (usando novamente a bitola de quem criou esta frase a minha envergadura intelectual nada tem a ver com a dos ministros de Oliveira Salazar e por isso posso falar de coisas mais “comezinhas”) mas são estes princípios de mal menor que nos levam a normalizar o que é mau, ou seja, contentamo-nos com pouco por receio do desconhecido. Mesmo que consideremos com manifesto exagero que os governantes que temos nas ultimas duas décadas são intelectualmente indigentes (esquecendo que são democratas, o que não é assim tão pouco importante como isso …) ao invés de criticar essa indigência, ao invés de sermos mais e mais exigentes, direi que é abjecto enaltecer os participantes no governo da ditadura, esquecendo em absoluto a falta de dimensão humana de parte ou todo desses governantes, a começar pelo seu líder máximo.
Quem discorda do actual panorama (e por actual refiro-me a um período mais alargado, que vai bem além do actual governo) tem sempre à sua disposição duas “armas” que são fundamentais : a opinião e o voto. Se como empresário acho inacreditável os erros de casting deste governo ? Acho, se não fosse tão triste daria para rir. Mas isso não me inibe de opinar e de ir votar, sempre, ao invés de me limitar a distorcer e divulgar factos em redes sociais e depois ter sempre uma indisposição de saúde no dia de ir às urnas. Esse é o acto supremo de um regime democrático, poder ir às urnas, mesmo elegendo pessoas que demonstram depois não terem os princípios que todos almejamos. Agora, usar a fraqueza de alguns (frise-se o alguns) dos nossos governantes dos últimos 10, 15, 20 anos, para defender o regime de um torcionário básico como era Oliveira Salazar … não pode acontecer, pois a dimensão humana deste personagem e o seu desrespeito pela livre expressão de opinião coloca-o como uma das figuras mais sinistras da nossa história. Defender o ditador Salazar como contraponto aos inenarráveis casos das últimas semanas é similar à defesa da União Soviética como Sol do mundo e de Estaline como pai dos povos (esquecendo milhões de mortos) ou a defesa de que Augusto Pinochet fez no Chile um milagre económico com os seus Chicago Golden Boys (esquecendo os milhares de pessoas sumariamente mortas).
Poder-me-ão dizer que no “reinado” de Oliveira Salazar não surgiam quase diariamente na comunicação social casos de potencial corrupção, compadrio e troca de favores. Claro que não, pela mesma razão que na actual Coreia do Norte também não surgem. Imprensa livre e ditadura são duas entidades que não combinam.
Discordemos, emitamos a nossa opinião (em democracia) mas, por favor, não normalizemos ditadores sem qualquer envergadura humana, esta sim muito mais importante que a académica ou intelectual.

Deixa o teu comentário

Últimas Ideias

19 Março 2024

O fim do bi-ideologismo

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho