A Cruz (qual calvário) das Convertidas
Ideias
2024-02-05 às 06h00
Um pouco por todo o lado, a informação local de natureza jornalística foi progressivamente perdendo fulgor. Porque, à semelhança da imprensa nacional, os leitores disponíveis para pagar um jornal ou uma assinatura digital estão a diminuir e, simultaneamente, as receitas publicitárias reduziram-se drasticamente. Ir até ao fim da rua tornou-se impossível para muitos projetos. Quer nacionais, quer regionais. E isso tem consequências na coesão territorial e nos elos sociais que se promovem.
No final do ano passado, o jornalista Serge Schmemann fazia, no jornal The New York Times, um retrato devastador dos jornais locais nos Estados Unidos. Desde 2005, desapareceram do país 2.900 títulos que se dedicavam ao jornalismo local. E muitos daqueles que hoje sobrevivem dependem da ajuda do poder político, estabelecendo por vezes relações de conivência que atentam de forma ostensiva contra a independência editorial. Na leitura deste jornalista, outrora quadro do News Tribune (de New Jersey), sendo parte da vida local, os jornais apresentam-se como um ponto central na vitalidade das democracias. Na sua perspetiva, a atual crise dos média locais nos EUA será uma das razões da confusão política que atravessa este tempo de preparação para as eleições presidenciais.
Procurando perceber a distribuição da imprensa local nos EUA, Schmemann encontrou muitas regiões que são hoje verdadeiros desertos informativos. E é precisamente as regiões mais pobres que registam o maior desaparecimento de títulos. Ora, sem uma mediação jornalística que zele pela monitorização distanciada dos poderes instituídos e do espaço público por onde todos circulamos, surge ainda com mais força desordens informativos que manipulam uma opinião pública completamente impreparada para perceber o que é verdade e o que constitui por vezes uma sofisticada forma de manipulação da verdade.
Em Portugal, a imprensa regional continua a debater-se com sérias dificuldades para a sua sobrevivência. Ora isso torna-a inevitavelmente dependente de poderes locais que frequentemente não têm qualquer pudor em tomar de assalto a agenda noticiosa. Precisamos, pois, de modos de financiamento mais claros que garantam a independência de projetos editorais vitais para a dinâmica dos nossos territórios, sobretudo aqueles mais periféricos.
Penso que na atual conjuntura os apoios públicos seriam imprescindíveis para garantir o reforço da imprensa. Para isso, seria necessário pensar linhas de ajuda pública dirigidas a este setor, sem diferenciar empresas. Há bons exemplos disto em França, na Áustria ou na Suécia. É um logro pensar que o financiamento público implica uma dependência do jornalismo em relação ao poder político. Não é assim em vários países onde tudo isso é regido por regras claras e justas.
Num ano em que celebramos 50 anos de liberdade, constatamos que existem ainda muitas coisas silenciadas e várias censuras ocultas. Um jornalismo solto de constrangimentos financeiros pesados e bem implantado nos territórios seria muito importante na promoção de um desenvolvimento mais equilibrado e na visibilidade de diferentes elites. Hoje, Portugal é um país bastante centralizado e estruturado por pequenas confrarias que pululam pela capital. E isso também se deve a um ambiente mediático que se aperta cada vez mais em Lisboa.
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