Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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É triste, quando o sol se vai...

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

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Conta o Leitor

2014-08-13 às 06h00

Escritor Escritor

- Carai, home, onde vais, Caminetinha?
Era assim que o saudavam, para os lados de Esposende. Para nós, era o Emídio. Na vizinha aldeia de Forjães, chamavam-lhe o Solinho (1).
E ele era, de facto, um pequeno sol que rompia as trevas da monotonia da aldeia. Um vagabundo, sem eira nem beira, sempre a pé pelas bermas da vida, com paragens obrigatórias nas tabernas. De Fão até Barroselas, não havia venda que não estivesse no mapa.
Uma paz de alma naquele corpo baixinho e crestado pelo sol da estrada. Boina basca a tapar-lhe o cabelo rapado, barba de semana, o casaco sebento, um ou dois tamanhos acima, calças largas, a varrer o chão.
À noite, na Venda Nova, espicaçavam-no:
- Desenha o altar da Senhora das Vitórias!
Vinha para a mesa uma folha parda de papel de embrulho da mercearia. Ele rapava dum lápis e começava. Traço lento, mas firme, esboçava a imagem da Senhora, que segurava um coração em chamas, com a mão esquerda, enquanto esmagava, com o pé direito, a cabeça da serpente a morder a maçã. A figura repousava sobre nuvens, donde espreitavam quatro angélicas cabeças aladas. A seu lado, os santos que, nas suas peanhas, partilham o altar com a Senhora: à direita, Santa Luzia e Santo Amaro; à esquerda, S. Bento e S. Francisco de Assis. De língua de fora, ao canto da boca, o Emídio rabiscava a seguir as colunas laterais, os floreados da talha dourada e, no topo, um resplendor com os corações de Jesus e de Maria. Uns retoques finais e o desenho era exposto ao espanto e à admiração dos circunstantes:
- Ah… Está bonito!
Ainda o desenho andava de mão em mão, já alguém sugeria:
- Emídio, agora bota uma peçada!
Fazia-se silêncio na taberna, onde pairavam vapores de álcool e uma nuvem cinzenta de fumo de cigarro. Ele pigarreava e, na sua voz de bagaço, gesticulando como um maestro, desatava a trautear a peça de música, compasso a compasso, imitando os instrumentos da banda. Acabava a suar, descobrindo o caco rapado e fazendo uma vénia aos aplausos da turba.
Chegavam-lhe uma tigela de vinho e ele matava, enfim, a sede da música, movendo ritmicamente a maçã-de-adão, enquanto engolia o líquido, até lhe escorrer, pelo canto da boca, um fio roxo de vinho, que pingava para a lapela do casaco imundo.
A seguir, chupava um cigarro oferecido, que lhe fazia mais magro o rosto barbudo. Mas num dos bolsos fundos do casaco, tinha sempre a sua reserva de Kentucky, para tempos menos generosos…
Pelo calor, era a festa das Vitórias. Na tarde das “entradas”, ele lá estava, pertinho do coreto, a reger a banda cá de baixo, nas costas do maestro, para gáudio dos romeiros.
Se lhe não agradava a interpretação, abanava negativamente a cabeça, com ar de troça. Os mais impetuosos, picados pelo aguilhão do bairrismo, faziam menção de lhe sacudir o pó. Mas havia sempre alguém mais ponderado a deitar água na fervura que se levantava.
A cena repetia-se nas outras festas da aldeia: S. Paio, Senhora dos Remédios e Santa Tecla, que fechava o Verão. E também nas festas das aldeias vizinhas, por onde passava durante o ano, indiferente aos cães que lhe ladravam dos casais.
Mas, fora isso, aquele mendigo com alma de artista era incapaz de ofender alguém, de tirar um centavo, de entrar numa rixa. Dormia onde calhava, numa azenha, num coberto, às vezes sob um tecto de estrelas. Comia uma sopa de esmola. Conta-se que, um dia, lhe ofereceram um prato de sobra dumas papas de sarrabulho, que comeu, deliciado, na sombra do coberto duma casa caridosa. Ao terminar, lambendo os beiços, alvitrou, com ar maroto:
- A avaliar pelas papas, os rojões deviam estar uma categoria!
Assim andou, até aos 70 anos, por este mundo. Veio a perecer por uma fatalidade do destino, quando foi atropelado por um carro em Forjães, corria o ano de 1988.
Premonitoriamente, o Emídio fora o protagonista dum conto (2), escrito em 1960, em que se finava justamente da mesma maneira, atropelado por um carro à beira dumas alminhas em Carvoeiro, Viana do Castelo.
Seria de prever, andando ele constantemente a pé na estrada, às vezes com um grão na asa. Mas foi pena… Ficou vazio mais um lugar reservado às figuras típicas da nossa infância. Foi como se o sol se pusesse. E é sempre triste, quando o sol se vai…


(1) Emídio Sol Viegas de Lima, nascido a 5.3.1918 em S. Martinho de Vila Frescaínha, Barcelos, e falecido a 14.9.1988 no Hospital da mesma cidade.
(2) “Névoas no Campo”, Adélio Torres Neiva

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