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Efeito de ancoragem no retalho

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Efeito de ancoragem no retalho

Ideias

2020-02-17 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

Disse ela: és a minha âncora. Fiquei a pensar na força e na beleza da afirmação. Eu sei que houve por ali transferências de sentido, pois havíamos estado em Vila Praia de Âncora, mesmo nas areias, e almoçado no «Verdes Lírios» um arroz de marisco muito saboroso. A verdade é que fiquei a pensar na força da palavra «âncora», no seu significado e simbologia, e aqui estou, arrastado por imagens apelantes. Porquê Vila Praia de Âncora? A relação, penso, é estabelecida com o rio, que se chama Âncora, mas que, segundo William Kinsey (1828), se chamava Amora. Seriam os romanos os culpados do nome, quando criaram ali um entreposto com cais de embarque, ou ponto de ancoragem? Há quem suponha que sim, embora tudo seja muito duvidoso. «Ancora» é palavra latina, e sempre referiu uma peça de ferro presa a uma corrente que, lançada ao rio ou ao mar, fixava as embarcações. Figurativamente, transformou-se em símbolo de força e firmeza, de tranquilidade e fidelidade. Para alguns, é a última esperança no meio da terrível tempestade. Sabendo as dificuldades por que passava, compreendi, pois, quando ela me disse: és a minha âncora. Psicologicamente falando, ter uma âncora significa ter uma referência, um ponto de apoio, um ponto de partida para qualquer ação a realizar. Em termos cognitivos, ter esta referência, este ponto de partida, é meio caminho andado para a ação. Saber como o cérebro humano organiza em torno de um ponto relevante todas as atividades subsequentes é trabalho da psicologia comportamental, e não há empresa retalhista que a este respeito se não atualize.
Acabo de entrar num hipermercado abundante de produtos. Levo na ideia uma música que não paro de solfejar e a palavra «âncora», recorrente. Lembro-me do efeito de ancoragem: por que razão isto me acontece? Que imagens, ou informações, entraram no meu cérebro e originaram isto? Pego na ideia e olho à minha volta. Vinho do Douro «Castelo d’Alba», 3,35 euros. «Poupe 25%». Vinho «Terra do Pó», da região de Setúbal, 4,99 euros. «Poupe metade do valor». Azeite Virgem Extra Gallo, Sublime, 2,79 euros. «Poupe 60%». Aproximo-me de uma montra de tapetes para automóvel. Num expositor, em letras garrafais, «TUDO a 4,99 euros». Lembro-me de uma peripécia com o meu pai: «Desconto de 25% em TODOS os cereais». Analiso a subtileza dos 4,99 euros. Já não me convence. Para mim são 5 euros e nem penso no arredondamento. O que são cereais? O que significa «TODOS» e «TUDO»? Que abrangência espacial tem este último quantificador? Se há quatro filas de tapetes, «TUDO» abrange as quatro filas? Na semana passada, descobri que não. Havia ali uma nota de rodapé, pequenina e escondida sob os tapetes da última fila, marcando 12,33 euros. Deixei os tapetes na caixa, eram muito caros e havia sido iludido pelo quantificador «TUDO». Fixo-me nos vinhos e na sua disposição, uns com preços elevados e no meio, respirando a medo, um tinto de Palmela a 1,99 euros. Ui… Que barato. Porque digo «Que barato»? Tenho, claro, referências de vinhos e valores aproximados, adquiridas ao longo do tempo. O mesmo para o azeite. Quem cozinha, sabe com certeza o preço do azeite. Olho melhor para o expositor do Azeite Virgem Extra Gallo, Sublime: preço por litro a 9,31 euros. 0,75 litros custavam anteriormente 6,98 euros. Um traço negro em cima deste valor. Ufa, já não custa isto, que grande desconto: 2,79 euros. Aproveito ou não? Aquele vinho a menos 25% também parece uma pechincha. Levo ou não?
Na verdade, seja qual for a situação, funciona o efeito de ancoragem. Ou a informação ancorada já estava na minha posse, ou é fornecida pelos valores expostos, o valor mais elevado servindo de âncora (geralmente riscado a negro), o mais baixo servindo de isca. Geralmente, o peixe morre pelos beiços. Não comprei, nem vinhos nem azeite. Acho que já vi os mesmos vinhos a um preço bem mais barato noutros mercados. E o azeite Gallo a 6,98 euros? Onde foram buscar esse valor? Não. De certeza que o compro aí a uns 2,5 euros.
Compro alguns produtos de que preciso para hoje: fruta, legumes, batatas e ovos a preços que me parecem corretos. Felizmente, sou um consumidor informado. Além disso, leio muito, inclusive livros de Psicologia Comportamental. Conheço os truques todos, e mesmo assim… E você, está bem informado?
*com JMS

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