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Em memorial

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Conta o Leitor

2014-07-30 às 06h00

Escritor Escritor

Rosa Pires

Talvez o significado não seja tão importante quanto isso, mas é a minha forma de lhes dar o braço e tê-las assim, uma de cada lado, eu no meio e nós as três entrelaçadas, a caminhar, e o nome na ordem alfabética, com o pormenor do q e o s a separar-nos somente: PqRsT.
Pois a vontade de as ter ainda, ao alcance dos meus braços, num aperto interminável é tão grande!

Não me recordo se realmente a uma delas cheguei a falar da outra. Mas quis o destino que ambas se tivessem cruzado na minha vida. A uma vi-a crescer, namorar, casar e ter a filha e mais tarde separar-se definitivamente do companheiro, também ele a fazer parte do grupo dos amigos e das festas nas garagens, qual discoteca improvisada nos anos oitenta e picos.
A outra, a P, conheci-a aquando da minha mudança já neste milénio, para a capital e, logo na altura que acabei de a conhecer, senti uma empatia quase ime- diata, apesar de um certo ar de indiferença que dela se desprendia, feito de propósito, quem sabe, para só se aproximar de quem ela queria.

Mas, por vezes, basta um pequeno instante bafejado na azáfama diária dos nossos dias, como um sopro no pólen de uma flor que se espalha multicolor pelo ar, para que tudo mude e se torne tão importante e alguém que acabamos de conhecer começa a fazer parte da nossa vida como se sempre o tivesse feito!
Ou, se calhar é esta minha mania, de fazer comparações ao juntar os pormenores: ambas serem tão parecidas fisicamente apesar de diferentes!

Para as duas, que em datas tão distintas e em pontos de residência tão longínquos, nunca se cruzaram nem nunca se conheceram...mas a mesma ânsia de liberdade, ou felicidade ou talvez um pouco de sossego...
Tão parecidas na minha confusão: uma meiguice a desabrochar para quem a quisesse e soubesse ver.

E pensar, na partida que as feriu, essa, não a quero ver nem pensar. Simplesmente o vislumbre e o jeito que as torna tão idênticas: um gesto de manusear o cabelo e o sorriso franco. Mas também aquela sinceridade pela falta de justiça, para quem era tão difícil calar dentro delas! E a qual também não sabiam disfarçar, apesar de talvez ser essa a minha opinião, mas uma forma tão peculiar de serem verdadeiras e isso causar algum transtorno, ao ser confundido com arrogância.

Se calhar só agora vejo que eram tão idênticas ou serei eu no meu mais íntimo pulsar que as quero juntar para as manter assim tão próximas de mim. E logo hoje, que raramente coloco rímel nos olhos, as lágrimas querem aflorar e sujar-me a cara. E depois vêm-me à memória outras pessoas que já não sei o nome, pois é esse o meu grande defeito: esquecer tão rapidamente os nomes de quem se cruza comigo. Como é possível, esquecer os nomes das pessoas, quando todas elas me tratam logo pelo nome? Ainda hoje não percebi a verdadeira dimensão dessa minha tão escondida dificuldade. Porque se um dia me apanham em falta, talvez pensem: Ah! Afinal é tudo só fogo de vista!

Mas, e o som das suas vozes aqui tão perto, ou a invejosa elegância dos seus passos na calçada, com tantos rostos a virarem o olhar para as verem passar admirados, aqui ao alcance dos meus pensamentos, não será um ponto a meu favor?
“Uma pétala perfumada...
Uma lágrima salgada...
Que vos dou eu, Amigas?”

A recordação dos seus rostos talvez se esbata, e um dia já confunda o P com o Q e o T com o S ou, por momentos, nem sequer pense nelas. Mas num ponto qualquer e em qualquer lugar, ao olhar a tão desejada rua a que volto todos os anos no verão, a da minha infância, da qual aguardo todo o ano por aquele sabor do Norte e o sol a doira de uma forma que não vejo noutras ruas, porque no meu egoísmo, lá está, ainda me vejo pequena e a descê-la mesmo que a maior parte do ano chova, e nem a alcunha porque era conhecida me faz querer não voltar lá:

“Olha, vem aí a esticadinha...” e depois fugiam a esconder-se quando a minha mãe me mandava ir à mercearia na mesma rua antes de chegar à vila. Porque parecia que o mundo se limitava àquela rua e o calor do mês de agosto e o cheiro das copas dos pinheiros queimados dos incêndios que por essa altura raiavam também, entorpecia os passos e entrava-nos pelo nariz e, nem o medo de vivermos ali tão perto, agora à distância, me faz sentir a noção do perigo que agora vemos pela televisão.

Que por vezes, a saudade que sinto, é a de ter ainda tudo e todos ao alcance das minhas mãos e as gargalhadas que soltávamos, porque o presente só dói por se tornar passado a cada instante que passa.
As lágrimas talvez sequem e o sal talvez se evapore mas a rua há-de me trazer sempre a imagem de uma, apesar de não me recordar se alguma vez a subi ou desci ao lado dela, e o telefone pela manhã, no trabalho, talvez ainda toque para a outra, porque ainda guardo o número do contato da sua sala...

E as vozes sejam as mesmas, porque se de repente as ouvisse seriam tal e qual sem o tempo que as gasta da memória, como acontece com os nomes porque não são escutáveis.
Uma com pronúncia do norte, e a da outra aqui da capital unidas no mesmo som, e assim misturadas em vários tons e o sorriso das duas a libertar-se apaziguando a tristeza que não me permito sentir e a T me diga:
“Vem daí rapariga tomar um café e fumar um cigarrinho, mesmo que depois, aqui em casa me apanhem, por mais que eu tente escondê-lo por baixo da mesa e o fumo a sarapantar subindo em espiral me denuncie ...”

E a P me convide:
“Rosinha hoje vais à sopa? é que não tenho boleia para ir a casa, o marido ligou que não pode vir...” e depois gastávamos o resto do tempo antes de voltar para o trabalho a ver as montras das boutiques e me confessava que já não tinha casa para guardar tanta roupa!
E as flores que não lhes levei, não levo, nem levarei, permanecem a florir em botões de rosa dentro do meu peito e assim as mantenho vivas, às duas, a ampararem-me agora a mim, porque se para uma o tempo ainda se libertou recentemente dela a outra já faz algum tempo que não lhe ouço o riso nem aquela forma tão peculiar de nos defender.

Nisso tão idênticas uma da outra, as duas mais novas que eu apenas dois anos.
No recanto sossegado da minha memória, aquele que reservo só para mim, e aqui me confesso, em memorial as guardo.

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