Segurança
Ideias
2020-06-08 às 06h00
Em 1933, António Ferro publicou Salazar, o Homem e a Obra. O livro resulta de um conjunto de entrevistas que António Ferro fez para o Diário de Notícias. O próprio Salazar redigiu o prefácio.
Numa das entrevistas, Ferro dá conta de um soneto, que se encontrava emoldurado na parede do gabinete em que Salazar trabalhava. Tratava-se do célebre soneto de Christophe Plantin, intitulado “A felicidade deste mundo”.
O poema fora escrito à mão, pelo próprio punho de Salazar, na língua original. E a ideia de Plantin sobre a felicidade veio Salazar a convertê-la em modelo de vida para Portugal.
"Ter uma casa limpa, aconchegante e bela,
um jardim florido com canteiros fragrantes,
frutas frescas, bom vinho, e as crianças distantes.
para gozar em paz a fiel presença dela”.
“A casa limpa, aconchegante e bela” é Portugal. E o “jardim florido com canteiros fragrantes, frutas frescas, bom vinho” é a visão de um Portugal rural, o modelo que Salazar queria para o país. Por sua vez, os Portugueses seriam “as crianças distantes”, que gozariam “em paz a fiel presença” de uma casa sossegada, uma casa entregue ao cuidado de Salazar.
Em 1928, pouco tempo antes de sobraçar a pasta das Finanças, no Governo da Ditadura Militar, Salazar fez uma conferência, em Coimbra, no Centro Académico de Democracia Cristã, intitulada “Duas economias”. Uma era a economia capitalista. A outra era a da “boa dona de casa”, com a qual Salazar se identificava e que iria propor ao país, ou impor, dado que não havia diferença.
“Sem dívidas, questões e sem qualquer querela,
herança a repartir, parentes litigantes,
contentar-se com pouco, evitar intrigantes
e viver com justiça uma vida singela”.
E, com efeito, Salazar, que se preocupava com o escudo forte e um país sem dívidas, pôs Portugal a ouvir e a falar a uma só voz, combatendo as vozes que não passassem de “plantas exóticas importadas”. E projetou para a Nação o sonho, que o identificava a si próprio: uma política “comezinha e modesta que consiste em se gastar bem o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos”.
“Com franqueza jovial, sonhar, sem ambições,
cultivar com prazer as caras devoções,
dominando o desejo e as tentações da sorte,”
Nesta estrofe, faz-se saber em que é que consiste uma vida singela. Ser modesto, o que quer dizer, sonhar sem ambições; cultivar as devoções [no original: “dire son chapelet”, o que significa, rezar o terço]; e fixando um rumo, segui-lo, não se perdendo em apetites desvairados, nem se fiando na Virgem.
“a alma livre mantendo, o raciocínio forte,
e em paz, a conversar com Deus, em orações,
aguardar sem temer a presença da morte".
Ao manter forte o raciocínio, dir-se-ia que temos aqui o argumento para a “ditadura da inteligência”, que foi a maneira como Henri Massis, um maurrassiano da Academia Francesa, caraterizou, em 1938, o Estado Novo português.
Mas, por outro lado, o poema fala de “aguardar sem temer a presença da morte”, rezando, conversando com Deus. De facto, tendo-se inteiramente consagrado à Nação Portuguesa, Salazar podia esperar, tranquilamente, o término do seu longo consulado, não vislumbrando, aliás, outro destino para o país. Mesmo que sozinho no concerto das nações, Portugal, se tivesse que morrer, morreria “orgulhosamente só”, não apenas como regime autoritário a sonhar um império, mas também como regime ruralista e “à sombra da Igreja”.
E assim decorreram quarenta anos, com Portugal a “viver habitualmente”.
Mas, no verão de 1968, quando Salazar passava férias no forte de Santo António do Estoril, ao sentar-se numa cadeira, fê-lo lançando o corpo para trás. A cadeira desconjuntou-se e Salazar caiu desamparado, batendo violentamente com a cabeça no chão. Ainda trabalhou durante um mês. Mas a queda teve consequências que vieram a revelar-se fatais.
No livro que publicaram há um ano, José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz, falam-nos em A Queda de Salazar, numa escrita primorosa, elegante, ágil e fluida, dos dois anos que precederam a morte de Salazar.
A Queda de Salazar revisita o “paraíso, claro e triste”, em que Portugal se havia transformado, e de que nos deu conta Antoine de Saint-Exupéry, na sua Carta a um Refém, em 1940. Reconstitui, pois, a atmosfera e o ambiente em Portugal num período curto, que vai da queda de Salazar, em agosto de 1968, à sua morte, em julho de 1970. Fala-nos, pois, do sobressalto, da inquietação e da intriga, que sacudiram o país naqueles dois anos. E ao fazê-lo recapitula os anos do salazarismo, os de um país vigiado pela Censura e esquecido de si.
A Queda de Salazar ocupa-se desses dias febris que se seguem à queda de Salazar.
Um mês de trabalho, com Salazar já afetado pela queda.
A deterioração da sua saúde, seguida do internamento no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, com uma intervenção cirúrgica, de urgência, para remover um hematoma.
Depois, o país e o mundo suspensos da sala de espera do Hospital, onde todos os dias era improvisada pelo menos uma conferência de imprensa, com os regulares boletins médicos sobre o estado de saúde do Dr. Salazar.
E foram desfiadas as razões médicas, que começaram com um otimismo moderado e acabaram em franco entusiasmo, fazendo os dignitários do regime respirar de alívio.
Mas um inesperado acidente vascular cerebral colocou Salazar em coma e transmitiu a certeza de que nada voltaria a ser como dantes na vida do Regime.
Deu-se, então, a turbulenta corrida à substituição de Salazar na chefia do Estado. As personalidades de que se falava à boca pequena, ou no maior sigilo, e a subida de Marcello Caetano ao poder.
Salazar regressa, depois, ao palacete de São Bento, residência oficial do Presidente do Conselho, por insistência de Maria de Jesus, a governanta de Salazar, sem que Américo Thomaz e Marcello Caetano se tenham oposto. Era como se no destino de Salazar se jogasse o destino do país.
Dá-se, ainda, a ocultação da verdade a Salazar, que se manteve na ignorância e na suposição de que se mantinha como Chefe do Governo. Ficcionava-se a realidade de Salazar. Mas uma tal ficção cobria como um manto sombrio a realidade do país.
A Queda de Salazar propõe-nos um majestoso coro de vozes num país febril, a viver um período dramático da sua história e dividido entre a necessidade de ter que abandonar o passado, que todavia tragicamente o constituía como uma sombra pesada, e a obrigação de ter que se fazer à estrada para abrir um caminho novo.
O 28 de maio afundava-se. Mas aquela madrugada que esperávamos demorou ainda quatro longos anos.
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