Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Eu e os Outros

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

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Conta o Leitor

2019-08-03 às 06h00

Escritor Escritor

Ana Leonor Rebelo da Silva Godinho

Acordei numa cidade. Os meus olhos viam-na repleta de edifícios, sombras de tristeza e ruínas. Perto de mim encontrava-se um grupo de estranhos, aos quais não prestei atenção. Estava compenetrado a pintar uma flor numa paisagem sem flores. Não havia nenhuma paleta de cores, somente o pincel nas minhas mãos. Eu pincelava sobre a tela com movimentos delicados, criava tonalidades, texturas e brincadeiras, e o pincel despejava um conjunto de cores irisadas e belas conseguidas através do meu pensamento. Porém, quando voltei a olhar para a tela para venerar a minha obra de arte, a flor tinha sido engolida por uma vasta floresta de folhas negras.
Arrepiei-me e pousei a tela com essa pintura que não saiu da minha imaginação. Olhei em frente, a cidade tinha desaparecido. No seu lugar existia agora uma floresta. Eu, os Outros e a tela branca e vazia ficamos parados à entrada dessa mancha a sombrejar escuridão e mistério. Dei um passo aventureiro e caminhei por entre a folhagem, seguido pelos Outros. Eu e a névoa serpenteávamos pelo trilho despreocupados e sem rumo. Perdi a noção do tempo que estive a caminhar, mas a resposta estava mesmo diante dos meus olhos. Eu e os Outros fomos conduzidos propositadamente à morada de um templo decrépito e de outras Eras.
Olhei para o céu que cobria o templo. Era uma espécie de bruma em simbiose com a pedras cinzentas da edificação. Avancei curioso e intrigado na sua direção. Mais perto, notei que havia pedaços de pedras fora do lugar que repousavam em suspensão no tempo e no espaço. Sentia-me contagiado pelo tom grisalho do céu e da fortaleza da ilusão. Depois apercebi-me de que não estava sozinho, os Outros também estavam ali e entraram no átrio. Ficamos parados diante de uma porta de dimensões astronómicas e mesmo sem trocarmos uma única palavra, os sentimentos naquele momento eram universais. Estávamos surpreendidos sem saber o que faziamos ali ou tão pouco o que nos esperava neste lugar. Então uma Voz, a voz do mensageiro, veio ter connosco e disse: «Quando decidirem entrar, tudo o que vos prende à outra vida tem de ser deixado aqui nestes degraus e para sempre esquecido! É só dar um passo em frente e nunca mais olhar para trás!»
Fiquei a meditar por momentos nas suas palavras. Isso de deixar a minha vida e identidade para trás pareceu-me uma ideia arriscada e brilhante. E eu segui essa instrução. Entrei no templo e senti-me acolhido por um vazio ancestral. O telhado estava esburacado e não havia nenhum objeto no seu interior. Era um templo esquecido e sem Deus. Lá dentro estava frio, mas esse frio era-me comunicado através da pedra e do cinzento vivente. Eu já não sentia nada. Estava oco por dentro. Os sentimentos e sensações foram removidos e para sempre esquecidos. Eu agora era um outro Ser.
Desde que cheguei ao templo não dei pela passagem do tempo. Aqui a noite, os dias de sol, chuva ou as estações não existiam. Apenas permaneciam intocáveis os dias de interminável cinza e névoa. Também me fui apercebendo, da inexistência de trocas de palavras com os Outros habitantes do templo. As minhas únicas palavras eram os pensamentos que as ruínas suscitavam e faziam ecoar dentro de mim.
O tempo foi passando subtilmente e dei conta que era cada vez mais raro deparar-me com os Outros. Via os seus vultos a tornarem-se cada vez mais ténues. Isso seria o efeito do esquecimento. Quando deixei de os ver, convenci-me de que o próprio esquecimento os levou e desapareceu com eles. Também eu estava a ficar transparente e não tardaria a ter o mesmo destino dos Outros. Mas seria a transição para uma nova etapa ou o fim?
Dava comigo prostrado para o átrio a observar o que se passava. Lembro-me de olhar pela vidraça estilhaçada, suja e encoberta por ramos secos de árvores, que murcharam de tão mortas que estavam, e ver que nem todos podiam entrar aqui. A esses, Outros, desconhecidos indesejados que tentavam entrar, o templo oferecia no átrio uma receção repleta de cães danados que os repeliam ferozmente com os dentes.
Quem seriam os indesejados Outros? Seriam as nossas recordações que nos tentavam resgatar?! Só as lembranças, as memórias dos sentimentos e sensações da outra vida estavam condenados a não trespassar a porta do templo.
À medida que fitava esses vultos condenados à realidade da vida, agarrados a esses momentos de alegrias, tristezas, amores, experiências, mortes e doenças, tudo desvanesceu para mim. Senti-me a desaparecer, a ascender e a transformar-me num átomo de energia, mas com pensamento.
Hoje sou mais um ponto de luz, uma estrela, que se move pelo espaço entre outras galáxias, universos e vias lácteas e brilha na companhia de tantos Outros».

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