Maravilhas Humanas
Escreve quem sabe
2025-03-22 às 06h00
«Era daqueles que punha o braço no fogo para ver até onde podia ir».
Arthur Penn (Cineasta)
Comecei a ir ao cinema muito tarde. Os cobres eram contados e exigiam outras obrigações. Recordo o impacto que teve em mim a primeira vez que visionei um filme em tamanho gigante. Os meus olhos eram um lobo de boca fechada que podia ser capturado sem armadilha, tamanho o espanto que observava. Tinha a cabeça em algodão pela vertigem que colhia nesse fim de tarde. Viciei-me como nos viciamos no Olimpo. Um estado maior, longe de ralhos e amuos, campo de voo a céu aberto, longe do eco que cria míngua interior.
Passadas umas semanas, no meio dos corredores da faculdade, escutava de um amigo que se tornou pele, a exuberância de um ator que, na época, já nada tinha a provar, mas que conseguiu disparar a atenção à grande arena e aos desnutridos por saber mais.
Nesses dias, por entre livros, uns trocos e noites sem sono, não era fácil não escutar a crua realização de Clint Eastwood quando colocou, em primeiro plano, o imponente Gene Hackman a protagonizar o premiado Unforgiven (Imperdoável).
Não fui ver o filme ao cinema. Não tinha peso na algibeira. Este não poder roía-me os dias pelo que escutava na cantina da universidade, nas ruas palmilhadas noite dentro, nas conversas sem horas, nos silêncios que vi que foram sacudidos para outras conversas. Só muito mais tarde – porque fiz questão disso – é que puxei o gatilho ao filme. Vi-o em silêncio. Sem esfinge, nem lince. Sobrou a certeza de ter valido a pena.
Este naco de palavras vem a propósito da morte do ator norte-americano Gene Hackman. Não por ter morrido (95 anos), mas pela forma como morreu. Não há ricochete que lamba a ferida. É ainda mais grave quando sabemos que teve de conviver com o alcoolismo da mãe, que morreu vítima de um incêndio que ela mesma provocou em 1962, e viu o pai abandonar a família aos 13 anos.
Sarapantou o lar ao alistar-se nos fuzileiros com 16 anos. A seguir, estudou jornalismo e produção televisiva, teve uma série de peculiares empregos e, quando finalmente procurou satisfazer as ambições artísticas em Nova Iorque, partilhou com Dustin Hoffman o apartamento, longe, muito longe, de saber o pico do companheiro do lado.
Andou à deriva como muitos. Acredito que teve semblante de lama. Só esfregou os olhos, anos mais tarde, quando conheceu Warren Beatty. Foi um relâmpago, em 1967, quando participou, em papel secundário, no lendário "Bonnie e Clyde".
A década de 70 foi um lustro. O detetive Jimmy Doyle no filme "Os Incorruptíveis Contra a Droga" (1972), garantiu a Gene Hackman o Óscar de Melhor Ator. Anos de glória, de salas com lotação esgotada, palmas nas costas, olés repetidos, luzes com gerador garantido. Um orgasmo mental que rubricou lenda na imortalidade. Uma década depois, nova estatueta, desta vez para "Melhor Ator Secundário", no filme que aqui já abordei. Um “Imperdoável” (1993) para quem ainda não viu.
A morte de Gene Hackman burila-me o estômago. Teve três filhos e nenhum soube, ao fim de nove dias, que estava morto. Nenhum amigo. Não houve um pingo de televisão. O aplauso passou a fome. Fugiu como foge a morte.
Ao longo de 60 anos, para além dos dois Óscares já mencionados, levou para casa dois Baftas, quatro Globos de Ouro e um prémio do Screen Actors Guild. Do western ao policial, do melodrama à comédia, foi um dos maiores da sétima arte polvilhada em 80 filmes, nem todos de excelência, mas em todos com o crivo do paladar de Hackman.
Morreu com o jugo do cruel. A poucos metros, também estendida com um cão, falecia a mulher que o acompanhava desde 1991, a pianista Betsy Arakawa, 30 anos mais nova. Esta, segundo os médicos, morreu de síndrome pulmonar causado pelo hantavírus (uma doença rara transmitida por roedores infetados). O ator morreu, cerca de uma semana depois, devido a um ataque cardíaco.
Afastado desde 2004, Hackman foi superlativo ao encarnar um polícia implacável, um sádico xerife, um treinador de basquetebol, o comandante de um submarino nuclear ou um delirante Lex Luthor. Tudo nele era cru. Natural. Próximo. Credível. Um dos nossos.
Antes de partir, lançou um olhar pela escrita. Publicou três livros com Daniel Lenihan: "Justice for None" (2004), "Vermillion" (2004) e "Escape from Andersonville" (2008). Em 2011 escreveu uma obra literária a solo "Payback at Morning Peak" e, em 2013, "Pursuit".
Chegados aqui parece que estamos numa bolha. Por um lado, o barulho das luzes, por outro a faca que desfia a carne humana.
Noreena Hertz, conceituada economista e ensaísta londrina, no livro “O Século da Solidão” (2021), afirma sem aspas que estamos perante a época mais solitária que a humanidade já conheceu. Dois anos antes, num estudo internacional feito nos Países Baixos, quase um terço dos adultos admite ser solitário e um em cada cinco millennials (nascidos entre 1980 e 2000) diz não ter amigos.
A meu ver, esta praga tem um culpado: o homem. Deixou destilar as frustrações pelo caminho mais fácil, quis engavetar os pavores, potenciou os medos em caixas de papel e recolheu o vazio quando a porta se fecha.
Deste lado e desse lado que me está a ler, o que pensar? Teremos tempo para parar, estar com quem devemos estar, abraçar e saborear o silêncio da maré? Por um instante que seja, acredite, vai valer a pena e lá no fim, quando a estrada estreitar, iremos ter alguém a quem nos agarrar e sorrir.
18 Abril 2025
15 Abril 2025
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