Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Homem senil

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2016-07-09 às 06h00

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Márcio Góis

De súbito parei, para recuperar o fôlego, mas esse gesto revelou-se inútil, pois o meu corpo vinha, de há uns minutos para cá, empalidecendo a um ritmo vertiginoso, acabando por desmoronar, sem o amparo de alguém, num chão laborado de pedra. Ainda assim, consegui esboçar antes de cair estatelado e de fronte no chão, um último olhar sobre um dos braços de Apolo, tendo logo, no segundo seguinte, tombado sobre o meu dorso um horripilante e comprido véu que anunciava a minha perda definitiva de visão. Deitado agora ao comprido no chão, só penso em levantar-me. Tento então mexer o dedo indicador da mão direita, esforçando-me o mais que posso, porém, ele permanece imóvel. Eis que reparo que o sangue que devia ocupar todos os vasos sanguíneos se recusa, sob qualquer pretexto, dirigir-se até este membro. Em seguida, tento mexer os restantes dedos da mesma e da outra mão, tento ainda mexer as pernas e levantar a cabeça que está deitada no chão sobre a face direita do rosto. Todavia, por mais que tente desembaraçar-me desta teia, o desfecho acaba por ser sempre o mesmo, ou seja, o de me embrulhar ainda mais nos seus apertados e inquebráveis fios que me vão, paulatinamente, retirando a vontade de continuar esta contenda.
Não vale a pena continuar a insistir, pois todos os ligamentos que unem os membros do meu corpo deixaram de ter de vez a elasticidade que lhes era reconhecida, carecendo eles assim de um líquido próprio que lhes retire esta maldita ferrugem. A carne que eles ligam não é senão agora matéria inerte, pronta e deixada à mercê de animais babosos e famintos com vontade de se deleitarem com uma refeição fresca. O pior de tudo é que tenho a quase plena consciência de quase tudo o que se passa à minha volta. Continuo a ouvir, em desassossego, os passos de homens e de mulheres a baterem no chão; o chilrar dos pássaros e o grunhido de outros animais dos quais não sei o nome; o estrepitoso barulho do vento a bater nos vidros e nas paredes dos casebres e nas folhas das árvores; o ruído ensurdecedor da música das colunas dos rádios e das rodas dos carros a deslizarem numa superfície lisa e cinzenta, feita de betão. Embora não compreenda a bizarria desta situação, a única coisa que de momento posso fazer é esperar que alguma destas almas que, vagueiam de trás para a frente e de frente para trás, se aperceba deste meu estado. E, de preferência, alguma que esteja solidária com esta minha maleita anedótica.
Se a memória não me atraiçoa, é a primeira vez que tal enfermidade toma conta de mim. E, quem se atrever olhar para mim neste preciso momento, sintirá seguramente um nojo agoniante ao ver a minha palidez, que é irradamente parecida com a de um nauseabundo depois de injectar na veia uma dose mortífera de heroína. Mas afinal, ao que é, ou a quem é que se deve este meu estado?
Antes disto ter sucedido, lembro-me de sentir uma cólera, semelhante à da ciumenta Medusa, embora esta por sua vez fosse estranhamente agradável. Surgiu depois de uma brisa cálida e agridoce ter irrompido pelo meu nariz. Ela não me era estranha e continua a não sê-lo! Antes pelo contrário, lembro-me tão bem dela como dos ditirambos que cantava quando era ainda um catraio. Mas a quem pertence este odor? A um animal ou a um homem não é certamente, pois não abjurei a sua presença, nem ainda menos tive o vómito a subir-me pelo esófago. Não, estas são hipóteses que não têm qualquer cabimento. Só pode ser de uma mulher! Mas qual delas? Espera, é ela, só pode ser ela. Não há que enganar. Apesar de estar absorto por não conseguir mexer o corpo, sei quem é proprietária deste bálsamo. Desde que a conheci, não há um dia do calendário judaico-cristão que seja em que eu não me lembre dela. Memorizei-a, como quem decora a tabuada dos nove, lembrando-me na perfeição da genialidade de todos os seus traços, linhas, arestas e curvas.
Recordo-me que, na última vez que a vi, o seu cabelo era, tal como no nosso primeiro encontro, liso, comprido e da cor do café, cobrindo, à frente, a pele gasta e tesa da testa, e, mais abaixo, as sobranceiras finas, escuras e em forma de semi-arco que eram apenas destapadas quando Éolo soprava sobre este uma brisa brejeira. E, à medida que ia deixando de olhá-la de frente e movia, em uníssono, os músculos oculares e a coluna vertebral em direcção às ilhargas e à retaguarda do seu corpo, ia vendo os inúmeros e incontáveis fios de cabelo espalhados e pousados, ao de leve e em forma de anfiteatro aberto, na parte superior das suas costas e dos seus ombros, enclausurando eles em si, as orelhas, as vértebras, e mais de metade do pescoço. Em seguida, ao olhá-la nos olhos vi, mais uma vez, que estes se pareciam com pequenos búzios de água salgada, largos ao centro e achatados nas extremidades, cortados ao meio por uma ligeira fenda onde se viam duas pérolas de uma negrura rara e virgem, só comparável à do traje das panteras. Ao baixar os olhos, como se estivesse a descer os degraus de uma escada, vi o seu nariz, altivo e seguro de si mesmo. Detinha a forma de um triângulo rectângulo achatado. Estava cercado em ambos os lados, direito e esquerdo, pelas maças do rosto, pálidas por natureza, adquirindo uma tonalidade especialmente rosada somente quando ela se via perante situações que considerava pouco confortáveis. Ao descer mais uns degraus, dei por mim a admirar a jovialidade dos seus lábios cor-de-rosa pálido. Pareciam dois riscos rectilíneos, encadeados na horizontal, feitos, cuidadosamente e sem falhas, com uma régua e um lápis de bico fino.
Por lembrar-me agora dela, o meu coração acordou em tremendo sobressalto, começando a agredir com enorme ferocidade e fraca sobriedade as cavidades, os orifícios, os órgãos, as veias e as artérias que o ladeiam, ao mesmo tempo que vai bobeando, com enorme desdém e para fora de si mesmo, esguichos de um líquido espesso e de cor avermelhada. Enquanto isso, o estômago já não ronca mais de fome. Como estará ela agora?
Sinto-me, por mais estranho que pareça mais calmo agora do que quando caí, sem nenhuma razão aparente, nesta manta de pedra.

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