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Ilegalidade...

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2022-03-07 às 06h00

Filipe Fontes Filipe Fontes

Há textos que são escritos de supetão, quase fruto do seu sobressalto que não sabemos de onde resulta, não descortinamos as suas causas e a sua urgência, mas desconfiamos de que se trata de tema sempre presente e latente, tema que urge abordar por tão generalizado e, cada vez mais, alargado ao nosso quotidiano. E tema que, no caso, reflecte a realidade exposta no último texto publicado, ou seja, espelho de uma atitude de procrastinação e adiamento sem justificação, omissão sem vergonha, remendo sem alternativa.

Trata-se das ditas “construções ilegais” que proliferam território fora, que marcam presença espacial e temporalmente no nosso quotidiano, influenciam e condicionam políticas urbanísticas, suportam financeiramente encargos infraestruturais - que foram estudadas e atendidas em múltiplos estudos e planos – e que, hoje (ou até hoje) não conhecem solução, mesmo as mais extremadas - demolição total ou legalização acrítica – antes a atitude recorrente de, adiando e disfarçando, evitando o confronto com a realidade e com as decisões devidas, independentemente da sua justeza e dureza…Num primeiro momento, importa reflectir e distinguir os vários significados e condições das construções “ilegais”, desagregando uma realidade que é tida como homogénea e uniforme, quando, na realidade, inegavelmente é diversa e heterogénea. Construções “ilegais” serão aquelas construções que, do ponto de vista administrativo, não resultam de uma decisão pública e de um título eficaz que legitima a sua edificação e utilização, ou seja, e numa linguagem simplificada e corrente, uma construção que não possui “licença de construção” ou “licença de utilização”. E, a pretexto deste entendimento, englobamos subrealidades tão diferentes nas suas causas e efeitos que, necessariamente, não favorece a melhor resposta às questões que se vão colocando em catadupa…

É convicção de que estas construções “ilegais” distinguem-se em três níveis, ou desagregam-se em três conjuntos: clandestinidade, ilegalidade e transgressão.
Clandestinidade que se traduz naquelas situações em que a construção se situa em “terra de ninguém”, se implanta em terreno de proprietário desconhecido ou não sujeito a regras ou critérios urbanísticos definidos ou tácitos, que não se suporta minimamente na infraestrutura ou espaço públicos existentes e que se vai adaptando numa resposta directa, rápida e reactiva ao quotidiano que se desenvolve. São exemplos os denominados “bairros de lata”, “bairro de barracas”, favelas e afins, ou seja, quase terra de ninguém, onde o anonimato abunda na ligação ao mundo juridica e administrativamente legal. Por vezes, traduz aproveitamento da realidade conjuntural, muitas vezes significa impotência, poucas ou raras vezes não resulta da necessidade, absoluta necessidade.

Ilegalidade que significa construções realizadas em terreno com nome, que se exibe e participa na construção do território de forma afirmativa, que não raras as vezes, alimenta-se da infraestrutura pública, constitui e assegura pagamento de impostos, mas que, por força do seu não tratamento administrativo devido, da ausência de um título não se encontra regularizada. Por vezes, é sinal de aproveitamento. Muitas vezes, é reflexo de ignorância e desconhecimento das regras. E, depois, da falta de enquadramento e capacidade de resposta à evolução legal que se regista. Proliferam por este território fora, temporalmente e de forma maioritária, referenciadas aos anos oitenta e noventa do século passado e que, tendo sido já absorvidas por duas gerações de planos directores, continuam no chamado “limbo”… permanecem no território existindo fisicamente, assinalam-se no plano influenciando urbanisticamente, não se aceitam do ponto de vista das regras e critérios, negando-se o seu reconhecimento jurídico e, assim, existência formal.

Transgressão que mais não é do que a actividade deliberada de construção sem respeito pelas regras e planos em vigor, quase como uma ultrapassagem envergonhada – mas assumida – das regras, visando alcançar, ou pressionar para alcançar, aquilo que as mesmas regras e planos não permitem.

Acredita-se que são (cada vez) menos e tenderão a rarear, mas reconhece-se que existem e que, regra geral, exemplificam atrevimento e desrespeito. Perante estas três realidades, de significado tão diferente, de génese, causa e efeito tão diversos, acredita-se não ser possível continuar a colocar tudo no mesmo conceito de “ilegalidade” e, sobretudo, tudo tratando por igual, isto é, não enfrentando a realidade, não confrontando esta mesma com a sua própria condição e ónus, não permitindo aliviar e clarificar o futuro, não deixando de o onerar e dificultar. Porque, na verdade, é disto de que se trata: resolver o futuro e os problemas, combatendo esta letargia que a ninguém (acredita-se) deixa satisfeito, a todos gera dificuldades: aos proprietários porque não regularizam as suas construções e vivem sobressaltados com processos de fiscalização e contraordenacionais; às entidades públicas, nomeadamente câmaras municipais, porque balançam entre uma atitude extremada que todos querem evitar (demolição) e um adiamento e disfarce que remenda, nada resolve e se dificulta a si próprio com o “passar do tempo”; a todos nós, que não compreendemos como, todos nós enquanto comunidade, não somos capazes de resolver o que conhecemos, há muito sabemos e experienciamos e, sobretudo, o que temos necessidade e obrigação de resolver. Dir-se-á que somos assim. Mas também dir-se-á que podemos ser mais e melhores. E a pretexto de tudo isto, já agora, valerá a pena ver o filme “O tecto”, Vittório De Sica, 1956… ensina muito mais do que estas palavras todas juntas…

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