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Braga, sábado

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Individualismo higiénico

Fala-me de Amor

Individualismo higiénico

Escreve quem sabe

2020-03-20 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

É para que nos mantenhamos a distância tal que bem se possa dizer que estamos sós, mesmo que vivamos numa pensão napolitana. Quantos metros e a que velocidade voa um espirro? Por que tempos se mantêm activas as sementes de vírus de que sejamos estufa, infecto testemunho que plantemos num corrimão, numa maçaneta, na capa de livro preterido, em qualquer centímetro quadrado que deixemos atrás de nós – que alguém deixou atrás de si! Que ninguém me infecte, que eu, se infectar alguém, é porque espúrio mal me foi feito de primeiro, e vá de cidadão escrupuloso estar capaz de tudo evitar! Se não é possível escapar à totalidade das ciladas, será que conseguimos contornar a que montada esteja para nós?

Ode eu não compor ao vírus que me exime a libelos de misantropia! Sim, porque com espécimes da minha maternidade me dou com arrepios, aliás por cínico me tenho, de Diógenes discípulo. E, tanto cuido ter vencido o meu mestre, que de lamparina prescindo para falhar encontro com honesto homem. Vejamos: como posso eu encontrá-lo, sobretudo entre os políticos de primeiro rangue, se mal me vendem a contrição de que faltam meios de defesa, e de suporte de vida, porque não há fábrica que entregue o que em dois meses ninguém encomendou? O que nem preciso era que fosse encomendado num corre-corre, por dever constar em armazém. Ele são luvas, meu deus, viseiras, e filtros para os rostos do pessoal da saúde, que retransmite o que recebe com ovações de Hipócrates.

Que tudo se resume a que ande de mãos nas algibeiras – nas minhas, naturalmente –, a que não me chegue a criatura passageira, alheia do que carrega; a que não tussa, mesmo se entalado, a que não espilre, ainda que me chegue a mostarda ao nariz… Em suma, é quase como aquela história de deserbar ou desmatar a cinquenta passos de casa, exorcismo que nos livra de labareda que nos lamba os telhados por dentro, e a alma por fora.
E o dinheiro, que aparece a rodos por terça-feira de múltiplas magias! Que vem, de onde sempre esteve, cálculo eu, mas que os crânios de hábito não viam, enquanto era só para aliviar sufocos ou melhorar as condições gerais de vida dos que contam para pouco. Mas agora, como entalado pode ficar até o mais protegido – isto porque os vírus são pouco criteriosos quanto a quem tramam –, pois agora parece que há milhões para que o tecido social não se desconjunte.

E quando este vírus passar? E se depois do corona vier o mitra, tido por extinto há gerações? Será uma espécie de vira o disco e toca o mesmo? Ora, não é que precisássemos de grandes confirmações, mas longe estamos de viver em sociedades orientadas para o bem comum, para cívico bem-estar, para o progresso da maioria. Pelo que constatamos à saciedade, o cidadão anónimo é um item descartável, só não o sendo quando pode levar consigo, para sítio mau, aquele que a contragosto se vê de redomas fendidas.

Assim como assim, eu quase preconizaria que todas as pestes nos caíssem em cima, que de todos os impasses nos descobríssemos tolhidos, para que uma regeneração fosse ensaiada. Precisamos de descrer do que temos, para nos abalançarmos a construir algo de outra classe. O socialismo, que já não existe, argumentava que não podia dar mais, porque porção significativa dos recursos era alocada a uma guerra fria. Com que se desculpam, hoje, os nossos testas de ferro? E por que burrice os ouvimos?
Eu, enquanto se fazem vontades, moldo-me a Simeão Estilita: do alto de garbosa coluna não é de crer que me peguem a praga e, alta sendo, não é de crer que, ao rés-do-chão, me oiçam a pregação.

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