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Inquéritos e discrições

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Inquéritos e discrições

Ideias

2024-07-16 às 06h00

Jorge Cruz Jorge Cruz

"O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias."
(José Saramago)


Apretérita semana foi bastante fértil em acontecimentos com forte carga política, embora, em boa verdade, alguns deles, curiosamente aqueles que obtiveram maior repercussão mediática, tenham dado uma contribuição negativa para a saúde da democracia portuguesa.
Refiro-me, concretamente, aos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas, e à entrevista da Procuradora Geral da República (PGR) à RTP. Acredito não ser exagero, tão pouco estultícia da minha parte, concluir que os portugueses ficaram insatisfeitos, porventura até pesarosos, com os factos que se registaram em qualquer dos dois casos.
A CPI, que já se tinha prestado a um papel impróprio, um papel que não parece corresponder às funções que legalmente lhe estão cometidas, pretende agora chamar ao Parlamento o Presidente da República. Mas se esta CPI anseia ser pioneira nesta matéria (nunca um Chefe de Estado entrou na Assembleia da República para ser ouvido numa comissão deste tipo), o partido de André Ventura quer ir ainda mais longe, pois pretende coscuvilhar as mensagens pessoais do Presidente da República e do Dr. Nuno Rebelo de Sousa, seu filho.
O regime jurídico dos inquéritos parlamentares diz, claramente, que os mesmos “têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração.” Na audição de Daniela Martins, a mãe das gémeas que, convém recordar, não é arguida, mas apenas uma mãe em grande sofrimento, igual a tantas outras, e que naturalmente tudo fez e certamente fará pelas suas filhas, nessa audição, dizia, não se viu o mínimo de compaixão, o mínimo de compreensão pelo seu sofrimento.
Do ponto de vista político, e não só, claro que subsistem muitos pontos por esclarecer. Há demasiados silêncios, bastantes contradições e, eventualmente, algumas explicações que não têm correspondência com a realidade. Uma certeza, contudo, parece tornar-se cada vez mais clara: a mãe das crianças estará, sem qualquer dúvida, isenta de culpas no processo que conduziu ao tratamento das gémeas. Limitou-se a fazer o que outra qualquer mãe faria, ou seja, salvar as filhas!
Os deputados que integram a Comissão Parlamentar de Inquérito têm a nobre obrigação de averiguar os factos relacionados com o tratamento das gémeas luso-brasileiras, estritamente no âmbito da sua função, de “vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração”. Face às muitas pontas soltas, ignoro se o vão conseguir. Em todo o caso, é imperioso que a procura da verdade não seja tão cega a ponto de atropelar os direitos fundamentais dos cidadãos.
A entrevista da PGR à RTP, a primeira em quase seis anos de mandato, e quando faltam escassos três meses para terminar o seu mandato, pecou por tardia e revelou-se pouco ou nada esclarecedora.
Não se pode dizer que Lucília Gago seja uma pessoa comunicativa. Ao longo do seu mandato a comunicação da PGR fez-se através de comunicados do seu gabinete de imprensa, mesmo quando a gravidade da situação impunha que fosse ela própria a esclarecer a opinião pública. A demissão do Primeiro-ministro, na sequência de um parágrafo num comunicado cuja autoria, aliás, a PGR reivindicou, colocou-a no olho do furacão, mas, nem assim, se ouviu uma palavra sua.
“Sempre considerei que a discrição é sempre melhor do que o espalhafato. Não tenho, nem nunca tive, o culto da imagem. Não privilegio tal coisa e não preciso de popularidade. Não preciso, de modo algum, de estrelato”, explicou na entrevista para justificar o seu silêncio.
Claro que em determinadas funções, de que a Procuradoria Geral da República poderá ser um excelente modelo, é conveniente ser discreto, não chamar a atenção, ser recatado. Mas tal não poderá corresponder a um isolamento eremita, a qualquer voto de silêncio, antes terá sempre que ser compaginável com as normas de um regime democrático.
Acontece que Lucília Gago sempre se furtou a dar explicações sobre casos que causaram inquietude na opinião pública – entre outros, sucessivas violações do segredo de justiça e excessiva utilização de meios intrusivos de prova -, e terá sido esse sobressalto da cidadania que originou o chamado “Manifesto dos 50”.
Ora, na entrevista, ao sentir-se acossada, além de não serenar os ânimos, a PGR assumiu uma postura algo agressiva e conflituosa, que contrasta com a discrição e recusa de espalhafato, as quais disse serem seu apanágio, falando numa “campanha orquestrada” por políticos, nela incluindo a ministra da Justiça, contra o Ministério Público (MP). “Estou perfeitamente consciente de que há uma campanha orquestrada por parte de pessoas que não deviam. Campanha orquestrada na qual se inscrevem um conjunto alargado de pessoas que têm ou tiveram no passado responsabilidades de relevo na vida da nação”, enfatizou. Ou seja, deixou pairar no ar a existência de uma guerra institucional, asserção que complicará sobremaneira a sucessão e a eventual revisão legislativa na área da justiça.
É neste clima de sobressalto, acentuado com o facto de a tese da conspiração também ser subscrita pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que Luís Montenegro e Marcelo Rebelo de Sousa terão que escolher a personalidade que irá substituir Lucília Gago. Uma tarefa que afigura ser extraordinariamente difícil.

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