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Je Suis Charlie

Da Importância das Organizações Profissionais em Enfermagem

Ideias

2015-01-11 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Permitam-me que dê a esta crónica um título em francês, expressão que hoje ressoará nos espíritos de quem não encontra justificação humanamente entendível para o que aconteceu na redacção dum jornal humorístico francês. EU SOU CHARLIE!

Ouve-se gritar “allahu akbar” num arruado de Paris. Grito limpo. Exaltação que nada tem de piedosa, pois que seguida por tiros soltos de metralhadora, duma arma que acabava de deixar um rasto de morte entre os colaboradores do “Charlie Hebdo”.

Das últimas semanas vinham coisas menores se comparadas com este massacre. Teria sido testemunhado que a mesma exultação fora proferida pelo jovem que se apresentara de faca de cozinha num posto de polícia em Joué-lès-Tours. E em Dijon, do carro que foi carambolando em peões num curto trajecto urbano, ter-se-ia ouvido brado igual. E estaria o deus muçulmano nos lábios do motorista que se atirou contra o mercado de Natal em Nantes.

Seriam muçulmanos de raiz ou convertidos, mas agiriam como pessoas desequilibradas. Não seria a fé o motor. Não seria para tomar à conta duma guerra entre credos ou civilizações. Talvez houvesse exagero nos testemunhos, linha oficial atenuadora avançada pelas autoridades judiciais. Mas não desta vez, que gravada ficou a assinatura. É em nome de Alá que a operação sanguinária é executada. E diz, por conseguinte, respeito a todos os muçulmanos. Joga-se com a ideia que há um islão pacífico que nada tem a ver com as fúrias sangrentas de quem degola, esventra, ou criva um corpo com munições de calibre de guerra. Mas a fé é a mesma, como igual é um conjunto de práticas diárias.

Em Setembro um porta-voz do Estado Islâmico apelara a que se fizessem atentados mortíferos. Por toda a parte, mas particularmente em França. Importaria matar os “sujos e malvados franceses” por qualquer meio ao alcance dos fieis. Os episódios de Dezembro pareciam vir ao encontro da sua proclamação. Haja quem possa ser reconhecido como líder e fonte de inspiração, e logo da massa anónima salta quem se apreste a executar.

Quanto as acções isoladas de Dezembro pudessem ser reflexo de perturbações individuais, quanto o primitivismo das operações denunciasse ausência de laços e de estrutura, é o inverso que se vê na meticulosa operação sobre o periódico satírico. De há anos que o Charlie Hebdo constava entre os alvos desejáveis de extremistas islâmicos. Não escapou à fúria de cocktails molotov. As instalações eram vigiadas, assim como protegido o seu director. Porquê? Por que não se pode fazer piada com o profeta! Pode não agradar aos muçulmanos, mas não se faz na Europa com o que é islâmico mais ou menos do que aquilo se faz com o que é cristão ou judeu.

Sobrepõe-se o ataque ao Charlie Hebdo às acções terroristas do 11 de Setembro. Não se faça a comparação pelo número de vítimas. Mais do que a perda de vidas, pesa em Paris a mordaça, a vontade de sujeição dos espíritos. O que se transmite, com esta acção terrorista, é que poderá sempre haver um par de irmãos ou primos que nos façam pagar com a vida pela liberdade de expressão e imprensa, pela crítica suave ou mordaz, pela invocação da plena cidadania e da laicidade. Diz-nos, em suma, que teríamos de abdicar, quiçá esquecer, alguns dos princípios constitutivos do mundo ocidental para podermos viver nas nossas casas, com vizinhos que, se não apreciam os nossos modos, melhor farão encontrando um estado teocrático a seu gosto.

Pressente-se, em França, um desejo de explodir e gritar basta. Interrogam-se os directos televisivos se há uma ebolição próxima dum estado de guerra. Será um exagero, por certo. Nenhuma força radical de carácter político ou social apela a pogroms. Mas, a julgar pelos rostos crispados, não seria difícil encontrar quem a eles aderisse com uma explosão de adrenalina. Em todo o caso, ninguem estranharia que acções isoladas fossem intentadas contra indivíduos, grupos, ou símbolos islâmicos.

Não se reproduz em jornal o que se ouve dizer sobre o que haveriam de fazer aos “árabes”. Talvez nada descambe, e a prisão iminente dos assassinos ajude a apaziguar os espíritos, ainda que à hora em que termino esteja em curso uma tomada de reféns num supermercado judaico, e quinta-feira tenha havido disparos de kalashnikov com um morto e um ferido grave, vindo o executante a ser identificado como próximo dos irmãos Kouachi.

Talvez o Charlie Hebdo continue, ou talvez acabe, porque não sobreviva nas pessoas a vontade de continuar com a memória sempre presente das vidas que ali foram ceifadas. Como seja, nada os muçulmanos ganham, porque mais cavado fica o foço entre o que representamos.

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