Os bobos
Escreve quem sabe
2021-11-26 às 06h00
O planeta está em nervo permanente. Inquieta-se com o silêncio. É indiferente ao barulho. Abarca quase oito biliões, distribuídos pela lotaria da sorte. A pandemia abanou, por instantes, a insuportável insistência do homem em ser pedestal em terra de ninguém. Não chegou. Sabíamos que não chegava. Bastava o semáforo voltar ao verde para regressar o circo dos dias.
Esta letargia pelo essencial ganhou escala na segunda metade do século passado. Nesse período, houve avanços notáveis nas mais variadas áreas. Uma odisseia de saber que pulverizou recordes, esticou o viver, fez o mal esbracejar e aquartelou aqueles que desistiram à evidência. Neste trapézio de aparições nada foi tão fulminante como o luzir da internet.
Criada com fins militares pelos Estados Unidos nos anos 60, em plena Guerra Fria, a rede mundial de computadores deixou o confinamento nas décadas seguintes. Saiu dos gabinetes de guerra para invadir os meios académicos até içar a bandeira e tornar-se viral.
Se a televisão abriu a boca de espanto ao Mundo, a net arregalou-lhe os olhos e nunca mais os fechou. Jamais voltaremos a ter a solidão do quilómetro. A inércia do desconhecido. A ingenuidade do acreditar. Há agora um deserto destapado e frio. Um furacão coberto. Soltam-se amarras em nome da conectividade.
Quem, como eu, viveu a infância sem relógio, a chutar a bola por entre medas de centeio, ainda afaga parcelas desse tempo. Os livros eram comprados na papelaria próxima. O ganho ficava na terra. Era a economia circular, benevolente, previsível. Anos mais tarde, a pesquisa fez-se à custa da biblioteca universitária. Aqui e acolá, entrávamos em fila de espera para ter o autor desejado. À míngua, cosíamos as letras. À farta, angariavam densidade. Dávamos-lhes tempo.
Hoje, não estar ligado é para a geração mais recente uma utopia. Rendilha-se o minuto como se desfaz uma hora. É tudo volúvel. A notícia ganha barbas em tiro. Não há paciência para o corpo do texto. Troca-se o olhar pelo lead e basta. O que fazia parar, não conta. O que fazia andar, é enfado.
Puxo este quadro porque li, por estes dias, que o homem responsável pela introdução da internet em Portugal rubricou o último online. Jubilado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, José Augusto Legatheaux Martins é mais do que um dos fundadores do primeiro servidor de acesso à internet (ISP - Internet Service Provider) português, elaborado em 1996. Na última aula, estendida em 90 minutos, confessou que continua apaixonado por ela. Descreve-a como “a realização tecnológica humana de maior complexidade”. Apesar do vigor do amor, reconhece que é uma porta aberta onde entram “malfeitores”, tudo porque “foi concebida sem a faceta da segurança”.
Tem autoridade Legatheaux quando aponta o dedo à meia dúzia de empresas que têm na mão a segurança, o funcionamento e a estabilidade da internet. Quando há falha, o efeito dominó entra em vertigem. O recente apagão dos ases de Zuckerberg (Facebook, Instagram e WhatsApp) colocaram a nu a fragilidade de uma estrutura que continua a revelar buracos na nossa confiança.
A Europa tem trabalhado na regulação. É inegável o esforço. Todavia, a soberania digital reside nos Estados Unidos e na China, espelhada nas valorizações pornográficas que todos assistimos nas bolsas de valores onde pontificam os cinco colossos da internet: Apple, Microsoft, Google, Amazon e Facebook.
Amedronta esta consciência. É tenebroso este poder quando é sabido que, desde 2019, mais de metade da humanidade está conectada. A internet não devia escapar a uma constituição que fosse garante de solidez. O seu inventor, o britânico Tim Berners-Lee, já veio a terreno defender a urgência de um consenso internacional entre governos e empresas tecnológicas. Só assim podemos colocar travão às malfadadas fake news e aos abusos de privacidade. A continuar a assobiar para o lado, esta autoestrada livre e aberta irá prosseguir a linha sanguinária, a matar sonhos e esperanças, a sugar até ao tutano a coberto da ímpia conduta dos cobardes.
Legatheaux é um visionário que deixa marca no pote da fé. Curvo-me e associo-me ao minuto de aplauso que teve no fim do último rabisco. Que nunca esmoreça no contributo que todos pedem para que o elo humano seja uma mais valia que minore o exílio de tantos que estão privados do abraço. Há ainda muita estrada para andar. Muito maligno para queimar. Oxalá, ainda haja rede para o homem colocar o enter nos eixos.
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