Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Letras com barrigas

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2016-07-07 às 06h00

Escritor Escritor

Rosa Pires
O menino permanecia sentado na carpete da sala a brincar com diversos brinquedos espalhados pelo chão. Todos eles em miniaturas, porque eram assim que ele gostava dos brinquedos, como quase todos os meninos da idade dele entre os três e os quatro anos.
Levantava a sua mão direita pequenina e rechonchuda no ar, inclinava o corpo para o lado esquerdo e, sussurrando com a boca fechada como se fosse soltar um assobio, deixava sair um ruído como o que os aviões costumam fazer “verrummmm”.
O que nos levava a adivinhar, qual o era o brinquedo que desta vez ele escolhera do chão elevando-o assim no ar, por entre tantos que ali mantinha espalhados pela sala…
Claro que era um avião!
A sua irmã de doze anos, sentada na secretária num dos cantos da sala, tinha acabado de ler um livro de leitura obrigatória, do plano nacional de leitura. E suspirando fundo, tirando o ar com preocupação de dentro do seu peito, arrumava a mochila metendo dentro dela os livros e cadernos que ia precisar para as aulas do dia seguinte.
A menina não arrumou logo o livro e pousou-o na secretária para uma última revista pela história.
Não fosse ela esquecer-se de alguma passagem menos percebida, e o diabo fosse tecer na mente da professora as perguntas mais difíceis, e a sua memória, também ela perspicaz, lhe fosse pregar uma partida endiabrada, para que não se lembrasse de partes da história, às perguntas formuladas numa ficha que não sabia ainda quando seria, relacionada com esse livro, e todos os alunos sabiam de antemão, que poderia acontecer a qualquer altura!
A tudo isto o menino brincava alheio, sussurrando sons de aviões ou de competições de carrinhos de corridas, ou tentando encaixar ainda, um minúsculo cavaleiro nas costas de outro minúsculo cavalo!
A irmã preocupada com o livro, não deixava de libertar os profundos suspiros que lhe saiam do fundo do peito em golfadas de ar ruidoso e que mais ninguém dava atenção!
A mãe a fazer o jantar e o pai na sala, onde o menino e a menina estavam também, mas sentado à secretária dele noutro canto da sala, a terminar um trabalho no portátil.
Um quebra-cabeças, como ele dizia, sempre que o menino lhe perguntava o que estava a fazer com aqueles riscos verticais e horizontais que ele ainda não percebia o que eram, com uns cilindros pelo meio! Eram os gráficos do trabalho que o pai tentava terminar para, também ele professor, no dia a seguir mostrar em slides aos seus alunos numa aula de electrónica, para lhes explicar qualquer coisa que ele ainda não percebia o que era.
A televisão permanecia ligada, mas sem som e nenhum dos três lhe prestava atenção.
Quando o menino ouviu o último suspiro da irmã que se tinha ausentado por minutos da sala, levantou-se e abandonado os brinquedos no chão, veio espreitar o livro que esta deixara por cima da secretária dela ao lado da do pai e, pegando nele, levou-o nas mãos pequeninas e voltou a sentar-se próximo dos brinquedos abandonados.
O menino sabia as vogais: a, e, i, o, u, mas ainda não sabia ler nem juntar as letras, até formar palavras e naquele momento estava mais interessado nas gravuras da história do livro da irmã.
Por fim a mãe veio chamá-los a ele, ao pai e irmã para jantar e apercebendo-se do interesse deste pela história, disse-lhe que ou ela ou o pai o ajudavam a ler, mas só no fim do jantar.
Aconchegaram-se então depois os três no sofá, a mãe no meio e a menina de um lado e o menino do outro e começou a ler em voz alta que até o pai na cozinha, a acabar ele de arrumar a loiça, ouvia e ficou interessado!
No fim pegou ele no livro e imitou a mãe passando o dedo dele pelas palavras como a mãe tinha feito, e quando chegou a um ponto de interrogação e depois a um ponto de exclamação disse:
- Esta letra tem uma barriga…e esta é mais magrinha, se calhar o filho dela já nasceu!
Nesta altura, até a irmã, mais atenta à imaginação do seu irmão sorriu num olhar cúmplice com a mãe, que até ela descobriu que os “r” pareciam botas de cano alto, mas viradas ao contrário!
O menino percorreu muitas das palavras do livro com o dedo e em quase todas elas descobria barrigas, como ele dizia que elas tinham.
O menino não se cansava de descobrir letras com barrigas e a todas encontrava solução, até para as letras que não tinham como o “i” que comparava com o ponto de exclamação. E à qual a irmã, sorrindo, disse que se calhar este estava a fazer o pino, por isso tinha a pintinha por baixo quando se transformava num ponto de exclamação!
E o “g” dizia ele, o menino, que parecia umas fotografias da mãe em que ela estava com as mãos a segurar por baixo quando a irmã e ele ainda estavam dentro da sua barriga uns meses antes de nascerem. E que ela guardava nos álbuns dele e da irmã, que por fim disse:
- Já sei mãe, os livros são feitos de meninos e pais, e por isso é que contam histórias para nós lermos, pois as letras têm quase todas elas, barrigas com meninos e meninas lá dentro!
A mãe sorriu mais uma vez pela revelação que o menino descobria nas palavras, ainda sem saber este o que elas significavam ou podiam transmitir, o que a deixava deveras contente. Quem sabe se dali a uns anos não escreveria ele, o seu filho, histórias com que todos se iriam maravilhar e outros meninos descobririam outras capacidades que as palavras podem revelar?
Por fim o cansaço ameaçava e o sono fazia bocejar o menino, e a mãe pegando devagarinho no livro, entregou-o nas mãos da filha que o foi guardar na sua mochila e maravilhada por ter com a ajuda da mãe e o interesse do irmão, aprofundado a história.
O menino fechava lentamente os olhos abandonando-se ao repouso no colo da sua mãe.
A mãe tentou levá-lo nos braços com cuidado, para não o acordar até à sua cama, a qual o pai já tinha afastado os lençóis para esta o poder deitar.
Mas o menino meio a dormir meio acordado ainda disse:
- Mãe, o teu colo é um ponto de interrogação e eu vou deitado nele como no meu colchão!…
O pai quase não conteve as gargalhadas e ainda lhe saiu um ruído abafado do peito que a mãe tentou calar com um “chiuuuuuuuuuuuu”, também ela não contendo quase o riso, tamanha era a imaginação que o filho deles tinha!

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