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Licor de granada

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Licor de granada

Voz aos Escritores

2025-06-27 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Não sou de licores, mas ofereceram-me há tempos um, caseiro, muito saboroso, que soube depois ser de granada. Andei uns dias com este nome na boca, meio adocicado, e também no pensamento, pois recordava-me aquele belo dia de sol em que saímos para Espanha, «chuleton de ternera» na mente, e Ávila, Córdoba e Granada como destinos pré-definidos. Sei que entrámos nas muralhas de Ávila, na mesquita de Córdoba e nos olivais extensos, sob um calor de estorricar um milhão de carrapatos, digerindo a custo uma carne lenhosa a gargalhar da cachena dos Arcos. Subir à Alambra sob quarenta e cinco graus, numa fila automóvel interminável, foi penoso exercício salvo pela deslumbrante visão da construção mourisca. A cidade vermelha, posta lá no alto da beleza, prova que os árabes não nos deixaram apenas marcas linguísticas relevantes, mas também produções de alta ciência e de extraordinária arquitetura. Um dos meus filhos havia-me perguntado, numa paragem das suas viagens, ali por Toledo, se queria que me trouxesse algum tipo de licor, podia ser de granada. Ao telefone, não assomam maiúsculas ou minúsculas, daí ter assumido que me traria um licor feito na região de Granada, terra de bons vinhos e excelentes óleos, que nós denominamos azeite, para acrescentar à minha garrafeira. A surpresa veio depois, porque o licor fora feito ali por Lugo, cidade bem a norte no mapa peninsular. Com efeito, o licor não era de Granada, mas de granada, isto é, daquele fruto cheiinho de grãos vermelhos a que nós, sempre impantes nas nossas diferenças linguísticas, chamamos «romã». Nunca me havia fixado neste pormenor, que até é bem maior, de num espaço linguístico pouco diferenciado se terem imposto duas formas, «granada» e «romã», aparentemente tão distantes entre si. Do fruto, a origem parece ser «granatus», isto, é, que possui «granos», ou grãos; da cidade não há tanta certeza, pois também se aponta para «gar-anat», ou seja, «colina de peregrinos». Curiosamente, a forma «granada», ou similares, impôs-se num grande número de línguas, europeias ou não, o que ainda releva mais o facto de «romã» ficar adstrita ao espaço galaico-português. De origem hebraica, latina (mala romana) ou árabe (rumm?n), como sugerido por vários estudiosos, a verdade é que deste granulado fruto se obtém um maravilhoso sumo, ou suco, traduzido no rótulo da botelha pelo saboroso «licor». Como acontece geralmente nestas circunstâncias, o pensamento transporta-nos a múltiplos lugares às cavalitas da analogia, que é, como bem sabemos, um processo cognitivo de transferência de significados e sentidos, razão por que não estranho ter desembocado na granadina e na granadilha. Há tempos, entusiasmado com os sabores do maracujá, alguém me sugeriu um fruto muito semelhante, que já vira nos hipermercados, mas que nunca provara. Comprei meia dúzia, claro, para satisfazer a curiosidade. Não gostei muito, é demasiado doce para o meu débil paladar, mas aprendi que se vendia licor de granadina, que eu supus diferente do licor de granada. Não era, por acaso, e fiquei ali na ponte, indeciso sobre esta confusão. Licor de romã, de granada ou granadina, tente o leitor provar as diferenças e diga-me depois qualquer coisa.
A granadilha, ou maracujá colombiano, de cor alaranjada, asseme- lha-se à granadina, e pode também entrar nesta saborosa discussão. Questiúnculas menos interessantes têm a ver com a criação, absolutamente nada literária, daquele objeto maléfico em má hora criado pelo ser humano. Refiro-me à granada que não alimenta, mas despedaça. Objeto bélico, os seus grãos enterram-se na carne dos inocentes e são um dos alimentos execráveis da morte. Em momentos inexplicáveis de horror, o ser humano continua a criar analogias que ultrapassam já as palavras e se inscrevem na essência da própria vida. Destas granadas, drones e bombas sanguinárias, não precisamos, muito obrigado. Dispensamos os objetos e apagamos de muito boa vontade os seus nomes dos nossos tão frios dicionários.

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