Enfermeiros portugueses em convenção internacional
Voz aos Escritores
2024-11-01 às 06h00
Lonjuras, distâncias em alturas, existências aladas marejadas pela ausência, dorida, sentida. Assim celebramos os nossos mortos, mais ou menos distantes, errantes no mapa geográfico com que nos decalcaram a pele, o olfato e o paladar. E com flores também.
O tempo que brinca com as lembranças que nos restam, que nos assolam inesperados sopros, aqui e ali, dos que nos foram tanto. Agarramos o que quer que seja com a mesma sofreguidão com que alguns inspiram pelo nariz ou espetam na veia. Os japoneses descobriram o umami, o quinto gosto do paladar humano, mas ainda não há palavra que encerre este resgatar momentâneo, esta viagem para um colo perdido, este instantâneo da carne a pulsar um retorno impossível.
Não é luto. O luto é uma luta que termina com a aceitação da evidência inevitável.
Não é saudade. A saudade é um pouco mais sobre a falta que o outro nos faz.
O que vos falo é intrínseco a uma relação única, como todas as que nos são importantes, feitas de agulhas de croché fino, com linha delicada, enredo crescido e acrescentado pelas mãos que não se largam, que não se abrem umas das outras, que entrelaçam as horas e os dias que nos estruturam e edificam. Um manto que não falha nos dias frios.
O que vos falo tem sabor de pataniscas que não consigo recriar na perfeição do seu sabor, densidade e forma, de arroz doce acabado de fazer e a ser comido às escondidas por ainda estar quente, de batatas fritas finas e pequenas, muitas para tantos netos a sentarem-se à volta da mesa, tem cheiro de fumo de lareira, de alheira pendurada a escorrer amanhãs grelhados na brasa e cortados a gosto no prato, de pão grande torrado na mesma brasa com a manteiga a entranhar-se de conversas e mais conversas à meia voz da luz ténue que embrulhava todos os pode ser que ainda não estavam definidos e que não conseguíamos adivinhar ou antecipar.
O que vos falo tem um ecoar de pés compassados a subir as escadas da casa, tem gargalhada inconfundível, tem amor no olhar e até um ralhete na cauda da voz.
O que vos falo pode existir no cheiro de uma camisola, no enrolar de um cachecol pelos ombros fora, no inesperado de uma expressão reconhecida.
Não é lembrança ou memória. É algo entranhado na memoração do corpo, antes até de ser consciência.
E para isso ainda não encontrei palavra que seja honesta. Que seja justa.
Entretanto, levo flores.
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