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Lonjuras, mantos e cachecóis

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Lonjuras, mantos e cachecóis

Voz aos Escritores

2024-11-01 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

Lonjuras, distâncias em alturas, existências aladas marejadas pela ausência, dorida, sentida. Assim celebramos os nossos mortos, mais ou menos distantes, errantes no mapa geográfico com que nos decalcaram a pele, o olfato e o paladar. E com flores também.
O tempo que brinca com as lembranças que nos restam, que nos assolam inesperados sopros, aqui e ali, dos que nos foram tanto. Agarramos o que quer que seja com a mesma sofreguidão com que alguns inspiram pelo nariz ou espetam na veia. Os japoneses descobriram o umami, o quinto gosto do paladar humano, mas ainda não há palavra que encerre este resgatar momentâneo, esta viagem para um colo perdido, este instantâneo da carne a pulsar um retorno impossível.
Não é luto. O luto é uma luta que termina com a aceitação da evidência inevitável.
Não é saudade. A saudade é um pouco mais sobre a falta que o outro nos faz.
O que vos falo é intrínseco a uma relação única, como todas as que nos são importantes, feitas de agulhas de croché fino, com linha delicada, enredo crescido e acrescentado pelas mãos que não se largam, que não se abrem umas das outras, que entrelaçam as horas e os dias que nos estruturam e edificam. Um manto que não falha nos dias frios.
O que vos falo tem sabor de pataniscas que não consigo recriar na perfeição do seu sabor, densidade e forma, de arroz doce acabado de fazer e a ser comido às escondidas por ainda estar quente, de batatas fritas finas e pequenas, muitas para tantos netos a sentarem-se à volta da mesa, tem cheiro de fumo de lareira, de alheira pendurada a escorrer amanhãs grelhados na brasa e cortados a gosto no prato, de pão grande torrado na mesma brasa com a manteiga a entranhar-se de conversas e mais conversas à meia voz da luz ténue que embrulhava todos os pode ser que ainda não estavam definidos e que não conseguíamos adivinhar ou antecipar.
O que vos falo tem um ecoar de pés compassados a subir as escadas da casa, tem gargalhada inconfundível, tem amor no olhar e até um ralhete na cauda da voz.
O que vos falo pode existir no cheiro de uma camisola, no enrolar de um cachecol pelos ombros fora, no inesperado de uma expressão reconhecida.
Não é lembrança ou memória. É algo entranhado na memoração do corpo, antes até de ser consciência.
E para isso ainda não encontrei palavra que seja honesta. Que seja justa.
Entretanto, levo flores.

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