Correio do Minho

Braga, sábado

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Manuel Fernandes

Fala-me de Amor

Manuel Fernandes

Escreve quem sabe

2024-07-18 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

«Os grandes nunca morrem, apenas desaparecem»
Ribeiro Cristóvão

Oprimeiro desenho que tenho de mim tem Lisboa na tela. Os olhos passeiam pela Rua das Necessidades, no pulmão de Alcântara, bairro emblemático da capital. É por lá que percorro os primeiros passos da minha memória, tantas vezes vergastada por sobressaltos de quem teve de andar a poisar em ninhos sem mãe nem pai. Foi no cheiro alfacinha que fui conduzido a gostar do verde, cravado em nomes que jamais esqueci. O maior, aquele que foi pele sem tatuagem, vestia o número 9 nas costas. O primeiro nome que ouvi, escutei e adorei. Só anos mais tarde o pude ver, pela primeira vez, num treino aberto no antigo Estádio José Alvalade. Moreno, cabelo solto, marcha acutilante e pontaria letal. A observar, um menino vidrado que, desde logo, pintou o imaginário aos saltos. Não disse uma palavra, tamanha a imensidão desdobrada na timidez. Tudo era descomunal e oblíquo. Pelo meio, os alongamentos do Jordão, a gazela de Benguela que tinha espantado meia Europa dois anos antes.
Nessa era, o céu do Terreiro do Paço irradiava um estendal a corar. As varandas, por onde pendia a roupa agrafada por molas de madeira, embalavam gargantas abertas. Lisboa era um carrossel de vozes que saíam de becos. As ruas, saudade. Uma melancolia grávida. Novos e velhos à conversa. Fios de luz à solta. Tascos nutridos de gente sôfrega por contar. Aqui e acolá putos a trocar a bola. Tudo isto observei, serenamente, à boleia de um carocha. A maré ainda não vislumbrava a Internet e o insustentável vazio.
Nesse Verão de 1986, estive em Lisboa com o coração a sangrar. Dias antes, tinha partido o meu amado avô. Um homem vertical que me cravou o olhar na alma. A ida à capital não foi bálsamo. Foi dura, por razões que aqui nada importam, e doce pela generosidade que recebi de uma prima afastada que teve sempre a paciência e o amor em partilhar e cumprir o meu sonho de ver o meu primeiro ídolo.
Sem o saber, Manuel Fernandes iria cumprir a décima segunda e última temporada com o emblema do Sporting ao peito. Antes do adeus, carimbou a imortalidade ao assinar quatro golos diante do eterno rival. Uma jornada épica que nada valeu ao clube, em contraponto ao legado embutido na nação leonina. O leão de Sarilhos, que um dia sonhava fazer um jogo com as cores de Alvalade, deixa herança insolúvel com mais de 400 jogos, chancelados em mais de 250 golos (só superado por Peyroteo).
Meses antes, em setembro de 1985, acompanhado pelo meu amigo Ruca, vivi a mais inolvidável noite europeia da puberdade ao som do meu emblemático rádio Óskar. O dia tinha sido de exigência. Era tempo do arranque das batatas. O rancho de gente, por entre o trabalho e a comida, estendeu a jorna até à hora do Sporting-Feyenoord (3-1). Fechados no quarto, encostados à parede, sugamos cada minuto de bola. Dois golos do eterno capitão leonino fizeram a diferença. Fiquei em êxtase. As pernas e braços que antes me doíam, passaram o teste do sofrimento sem banhos, nem massagens. Tempo largo, impagável pelo tanto que foi.
Na época seguinte, já com o verde e branco do Sado envergado, iria marcar um golo ao Sporting. Foi a primeira vez que sorri com um tento do adversário, amaldiçoando quem o despediu, um inenarrável inglês (Keith Burkinshaw) que nenhuma memória largou.
Já não há jogadores assim. Um homem que só não foi de um clube apenas pela inércia de uma direção incompetente. Saiu pela porta pequena. Regressou como treinador. Foi dirigente e embaixador. Não obstante, só há poucos anos é que recebeu o que há muito estava em crédito. Em mim, reinou sempre revolta pela pequenez de dirigentes que nunca souberam honrar os valores e a grandeza da instituição. Merecia ter tido um tempo maior de louvor que não apaga tanta incúria, para não adjetivar de outra forma.
Partiu há dias com o Sporting campeão. Uma palavra lapidar que desenha o corpo do mais notável capitão que conheci. Uma lenda que vai perpetuar gerações pelo que fez e pelo que resistiu em não fazer. Um nove à antiga, um rato de área, que povoou tantas tardes e noites da minha infância. Por ele e por poucos como ele, passei a idolatrar o futebol. Um desporto de valores, hoje perdidos por entre fatos e gravatas. O que ninguém apaga são os golos e a memória de um atleta eterno que enraíza o legado que construiu e que pode ser profeticamente assumido na frase que um dia António Oliveira proferiu: «por cada leão que cair outro se levantará.»

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