A força da gratidão
Ideias
2024-11-06 às 06h00
«Quando uma árvore é cortada ela renasce em outro lugar. Quando eu morrer quero ir para esse lugar, onde as árvores vivem em paz.»
Tom Jobim
Disse adeus uma voz rara em Portugal. Um nome que povoou o país por inteiro. Entrou casa dentro como um relâmpago para nunca mais sair. Foi tudo o que quis ser. Abraçou quem desejou. Provocou ciúme e sonho. O filho que todas as mães queriam. O amante impossível. O orgulho de um país vergado pela ditadura. O símbolo de uma liberdade doce. A rebeldia encaracolada. As mãos que soltaram um microfone que percorreu aldeias, vilas e cidades. Nasceu em Mourão, no Alto Alentejo, há quase 80 anos como João Simão da Silva. Desceu à terra como o infindável Marco Paulo.
O legado que deixa irá pintar o sorriso deste país quando for recordado este tempo. Uma tela que começou a receber os primeiros sinais ao decorar as músicas de Tristão da Silva, Fátima Bravo e, um pouco mais tarde, de António Calvário, primeiro artista a representar Portugal na Eurovisão. Ainda menino, com 12 anos, vê Joselito pela frincha da porta do cinema. Absorve-o como esponja. A semelhança com o pequeno cantor espanhol – uma das vozes infantis mais famosas do século XX – era de tal ordem que cedo movimentou centenas de pessoas nas festas de Alenquer.
Antes de ser Marco, foi o menino típico do Portugal amordaçado. Confidenciou que nunca teve luxos, um brinquedo sequer. Ia à escola do irmão para beber um copo de leite. Um desvario em tempos de vacas desnutridas. Um magro pormenor que tem tanto do perfil deste homem que nunca deixou de ser criança. Pude comprová-lo nos primeiros dias de agosto de 2005 quando subiu ao palco da praça mais nobre de Montalegre. Uma noite que entrou madrugada dentro pela conversa que tivemos numa unidade hoteleira.
Encontrei-o sentado quando abri a porta para o entrevistar. Recebeu-me de sorriso aberto sem me conhecer. Levantou-se. Estendeu-me a mão. Agradeceu estar ali àquela hora da noite. Falou da importância das rádios locais. Do quão foram decisivas para a carreira que teve e de tantos que conheceu. Escutava-o como se escuta a gaivota da manhã. Logo entendi que gostava de ser amado por um público que nunca o abandonou. Não foi difícil desdobrar o trabalho e a resiliência que empregava em cada noite de espetáculo, fosse no Barroso, fosse no canto mais deslumbrante do Mundo. Um voo lembrado em cada palavra e em cada gesto.
Com tudo isto e com tanto que não cabe aqui, a rigidez da mão que segurava o microfone foi derrubada pelo que ouvia. O mesmo sucedeu à minha timidez e ao malévolo preconceito que carregava fruto do que ouvia e da fraqueza que possuía. Nesse par de horas, recebi mais do que dei. Entrei com o corpo preso de convicções bacocas. Saí leve e com o sentimento que há mais Mundo para além do que a vista alcança. Foi das mais nobres lições que recebi, facto que quero aqui deixar em memória.
No entretanto, tive traços da infância diante dos meus olhos. À minha frente, o sentimento de ver uma lenda e poder tocar-lhe. Foi o primeiro nome musical que recordo
de menino. Rara era a casa que não tinha um disco, uma cassete de Marco Paulo. Rei do vinil, a rádio alimentava o pico da audiência com a voz que parecia nunca acabar.
Uma visibilidade – descoberta pelo produtor Mário Martins – que surgiu em 1966 quando lançou “Não Sei”, versão de António José de uma música do cantor francês Alain Barrière. Estava lançado o tiro para o abate de recordes. “Ninguém, Ninguém”, “Anita”, “Eu Tenho Dois Amores”, “Taras e Manias”, “Joana”, “Sempre que Brilha o Sol” e “Maravilhoso Coração” são algumas das canções que fazem parte de um vasto repertório que conta mais de 140 galardões de platina, ouro e prata, e um de diamante, o único intérprete em Portugal a poder gabar-se de o ter.
Longe estava o tempo do primeiro caché de 50 escudos e um garrafão de vinho. Entre outros, Marco Paulo trabalhou com António José, Rosa Lobato de Faria, Joaquim Luís Gomes, Fernando Correia Martins, Jorge Machado, Shegundo Galarza, Luís Filipe e Emanuel. Uma tribo que uniu músicos, escritores, letristas e produtores. Dito de outra forma, foram mais de 70 discos editados, mais de três milhões vendidos, números estratosféricos que o colocaram no topo. Apesar deste tufão, carregava a mágoa de nunca o pai ter tido a coragem de assistir a um concerto.
Tudo decorria em esplendor. A par de Amália Rodrigues, era o cantor mais amado e desejado. Viu grande parte do Mundo. Levou a língua portuguesa a locais outrora difíceis de entrar. Os emigrantes amavam-no. Tudo era perfeito. Um quadro imaculado.
Em 1996, com pouco mais de 50 anos e no ano em que assinalou 30 anos de carreira, a vida de Marco Paulo teve a primeira faca apontada ao olhar. A palavra cancro entrou- lhe na alma, sugando-lhe o brilho e o fulgor até à época invencíveis. Os caracóis desapareceram. Lembro as lágrimas da minha mãe quando lhe viu o rosto através de uma revista com uma primeira página inqualificável. Caiu-lhe o chão como a tantas e tantos. Foi dos momentos mais inexplicáveis que vivi por uma pessoa inalcançável.
De lá para cá, foi uma batalha sem tréguas. A cada passo, novo disparo sem aviso. Caiu e levantou-se. Nunca desistiu. Foi assim até há poucos dias. Um exemplo de fé. Um universo de palavras em tempo de vazio. Fica a voz e tudo que queiramos ter. Em mim e em muitos, a partida de mais um marco de infância. Oxalá as cigarras continuem a cantar. Com elas, sinto a voz que não se apaga.
07 Dezembro 2024
07 Dezembro 2024
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