A responsabilidade de todos
Conta o Leitor
2018-07-30 às 06h00
Autor: Armindo Santos
Ano de 1972. Em plena guerra colonial, algures no leste Angola. Tal como tantos outros, o furriel Cardoso de seu nome completo António Manuel da Silva Cardoso, ali cumpria serviço militar em missão de soberania. Natural de Lisboa, discreto e educado, merecia o respeito de superiores e subordinados como aliás lhe foi averbado na caderneta militar no fim da comissão. Os militares estavam organizados em companhias que incluíam quatro grupos de combate com cerca de 30 homens, realizando nomeadamente ações de patrulhamento, não enjeitando quer por iniciativa própria quer por necessidade de defesa, o contacto bélico. Por ausência do alferes que comandava o 3.º grupo, cabia ao furriel Cardoso por ser o graduado mais velho, substituí-lo nas suas funções.
Foi assim que inesperadamente por ser uma 4.ª feira, dia em que à hora do almoço chegava o correio por avioneta, o furriel Cardoso foi incumbido da operação Pedalada. Ele e os militares do seu grupo seriam transportados em viaturas até determinado ponto a partir do qual seguiriam a pé num percurso previamente estabelecido no mapa. Demoraram a saída de tal modo que quando embarcaram nos honimogues, os mais felizardos já levavam nos bolsos as cartas e os aerogramas com que as madrinhas de guerra, as namoradas e a família lhes falavam das saudades.
Logo que chegaram ao destino saltaram das viaturas e mal se deixaram de ouvir, o Furriel Cardoso estabeleceu um círculo de segurança e sem levantar a voz ordenou que, os que não
tinham recebido correio fizessem sentinela e os outros que abrissem a correspondência. Num silêncio quase total apenas interrompido por um ah de espanto ou por um riso de imediato abafado, souberam-se coisas inesperadas, confirmaram-se as boas e as más notícias, validaram-se compromissos.
A marcha foi recomeçada e poucos eram os que não alteraram a expressão. Passo cadenciado, a espingarda G3 parecia sem peso e o saco das rações não se fazia sentir. Os olhos fixavam as costas do camarada da frente parecendo desinteressados de tudo, absorvidos que iam em pensamentos que só deles e de Deus eram conhecidos. E chegou o momento de pernoitar. O local não era dos melhores. A zona, não tendo uma arborização muito densa, propiciava contudo alguma ocultação. Tinha no entanto o inconveniente de perto, cinquenta metros nem tanto, correr um rio, o Cassai. O cacimbo durante a noite iria fazer-se sentir. Água limpa, a correr bem, o rio teria naquele trecho uns bons quatro metros de margem a margem.
Já tinham comido com as latas de atum ou de carne quatro ou cinco bolachas do pacote shortcake que vinha na ração de combate, quando o cabo Ferreira, o Ferreirinha, pediu autorização para ir encher o cantil. O Gouveia também pediu para ir ao rio e os dois, com a G3 à bandoleira, carregados de cantis dos que se penduraram, depressa chegaram ao sítio onde a mata mais se aproximava do rio. Pouco tempo depois, o suficiente para o enchimento, o Gouveia levantou-se e regressou sozinho. Alguém perguntou se o Ferreirinha tinha algum cantil furado para lá continuar e o Gouveia respondeu que ele lhe dissera que já vinha.
Só que, como o Ferreirinha tardava, o Furriel Cardoso de G3 na mão, foi ter com ele. O atum tinha-lhe causado sede e como o cantil ainda estava por encher, foi ao encontro do Ferreirinha que, pensativo, esmagava uns torrões de terra. Quase não se apercebeu da chegada do furriel. Quando lhe ia fazer notar o inconveniente de estar ali sozinho e perguntar-lhe o que é que se passava, o Ferreirinha levantou a cabeça e perguntou-lhe como se estivessem noutro tempo, noutro lugar.
- Está a ver? Esta fartura de água? E esta terra? – Terra boa!
E esmagava uma mão cheia de terra preta e grossa!
E mostrava-a na certeza de que lhe confirmavam a sabedoria.
O furriel não o ouviu.
-É pá! Tu não vês que é perigoso estarmos aqui? Vamos embora! O furriel Cardoso pegou nos cantis que a mão disponível conseguiu agarrar e quase que empurrou o outro para que fizesse o mesmo.
- Que raio de altura para te pores a mexer na terra. – Queres lerpar ?
“Lerpar” era na gíria militar sinónimo de tudo o que corresse mal.
- Era da maneira que se resolvia tudo, já não me chateavam mais.
O Ferreirinha levou a manga à testa como se, limpando o suor conseguisse disfarçar a humidade que lhe veio aos olhos. O furriel ficou em silêncio. Depois, sem nada perceber disse:
- Anda, vamos embora.
Chegados ao local onde tinham parado para dormir, entregaram os cantis e cada um foi para debaixo duns abrigos improvisados com os ponchos e cascas das árvores. O furriel Cardoso sentiu que qualquer coisa não estava bem. Foi ter com o Ferreirinha e com ele partilhou um cigarro Português Suave recentemente recebido da metrópole. O cabo Ferreira contou então que o pai havia falecido pouco depois de já estarem no ultramar. Quisera ir ao funeral do pai mas o Capitão não o deixou. O irmão e o cunhado, que nem tinha feito tropa por ser amparo de mãe, queriam estabelecer o que viria a pertencer a cada um, inclusive a ele. A mãe não queria fazer partilhas sem ele regressar porque só duas terras é que tinham água e não queria “tirar às sortes” sem ele estar presente. Na carta que ele recebera, a mãe queixava-se que o irmão era a favor mas o cunhado que queria casar com a irmã que era a do meio, estava contra e já tinha havido discussão por causa dele estar ausente, por causa da terra, por causa da água, por causa da magra herança. A terra não valia muito, tinha muita pedra e a água de poço, de picota, quase desaparecia se o Verão fosse prolongado… e ali aquela água toda, aquela terra que de certeza daria duas colheitas por ano, tudo ao desperdício… Não sei se o meu furriel está a ver … Que quanto a ele, … que se lixassem… as terras, a água do poço, as partilhas mais o cunhado. Se ele pudesse levar aquela terra toda para casa… com a água ou então trazer a irmã e o cunhado e a mãe e até mesmo o outro irmão… Cum carago, meu furriel, era já amanhã …
Que sabia ele do dia de amanhã.
31 Agosto 2022
21 Agosto 2022
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