A responsabilidade de todos
Conta o Leitor
2019-07-19 às 06h00
Ana Maria Monteiro
A menina olhou-a longamente nos olhos, sem problema, podia fazer aquele momento durar quanto tempo quisesse, o comando era seu. Por fim, a luzinha (chamemos-lhe assim) não aguentou mais e, ganhando autonomia, quebrou o silêncio: “por que me olhas assim?”; “Porque tento avaliar a tua essência: se o virtual pode ser realidade, se existes ou se és um personagem que eu crio, se és onda ou frequência, física ou ficção e essas reflexões despertam-me outras e fixar em ti o meu olhar permite-me continuar a alimentá-las e estou a gostar”.
Decidiu continuar: teria de decidir que direção tomar. “– Oeste, sem dúvida.” Navegaria aquele obstáculo em forma de rio dentro de um caldeirão e aquela luzinha que emergia das águas, acompanhá-la-ia com a dança singular que usava para se mover, levitando naturalmente sobre as águas.
A ninfa seria a sua companhia e ajudaria a iluminar o percurso, naquele crepúsculo que se adivinhava desconhecido e propenso a surpresas. Decidiu dar início a uma amizade e convidou-a para esse papel, “… por isso escolho-te para amiga e companheira, vamos?”. A ninfa deu três piruetas luminosas com um grande sorriso e bateu palmas de contentamento.
Partiram. A menina, com a cabecita de fora, as pernitas encolhidas e as costas nas paredes do caldeirão e a ninfa num bruxulear azul e prata que induzia um sentimento de calmaria e paz que não poderia saber-lhe melhor, após as aventuras que acabara de viver e antes das dificuldades que sabia que ainda por aí vinham. A ninfa exalava um suave perfume a rosas e maçãs frescas e da floresta em redor desprendia-se um vago odor a mirra e percebendo os cheiros, a menina olhou os braços e viu os riscos desenhados pelas arranhadelas recentes, algumas ainda sangrando um pouco, recordou-se do que aprendera com a professora Áurea, sobre as propriedades medicinais da mirra e puxou os braços para fora do caldeirão, abrindo-os ao largo e expondo-os àquela brisa curadora.
Tal como tudo o mais, também esta viagem poderia durar o quanto a menina quisesse, o seu livre-arbítrio era total. Podia mudar fosse o que fosse a todo o tempo, bastava optar, algo tão simples quanto um mero clique. A menina decidiu que a viagem seria longa e calma, queria mesmo conhecer melhor aquela ninfa, conversar com ela, desfrutar o momento. Pensou que deveria dar-lhe um nome, sabia que era uma efidríade, mas isso é espécie, não nome; ela própria era humana, mas não gostaria ser tratada assim, queria ser chamada pelo seu nome e além disso não se pode ter amigos sem nome, os amigos têm sempre nome, têm tanto nome que basta ouvi-lo ou lê-lo para pensar no amigo e sentir logo uma batida diferente no coração. A ninfa precisava de nome, estava decidido. Lembrou-se dos nomes mitológicos mais comuns, mas sentiu o imenso peso que todos eles carregavam com as histórias mirabolantes a que estavam associados e a sua imensa diversidade de atributos, enquanto a sua pequena amiga luminosa precisava de um nome leve como ela. Pensou um pouco, fez uma pesquisa rápida na net e optou por Irene. Sim, ficaria Irene que é um nome de fada de outono, a estação da nostalgia e muito adequado a esta sua pequena amiga.
Irene revelou-se uma conversadora inteligente, sensível, atenta, animada, com todas as qualidades que a menina poderia desejar naquele momento. A conversa teve o efeito de um bálsamo e sem nem dar por isso Ana (assim era o nome da menina) deu por si a falar dos seus sentimentos, a explorar as suas emoções, a percorrer o seu mapa interior, falando de si, de amor, daqueles que ama e dos que amou, dos que ainda estão e dos que já partiram mas não deixaram de estar, família, amigos, colegas, conquistas e perdas, sucessos e arrependimentos, sonhos que se cumpriram e outros que não. Mas falaram de muitos mais assuntos, uns banais, outros sérios, a viagem foi prazerosa e Ana não sentia desejo de desembarcar e continuar a demanda que a trouxera até àquele momento. Irene pressentiu uma certa inquietação, sabia que Ana caminhava para a morte (sabia que era assim com todos os humanos) e quis agradecer-lhe pela importância e papel que lhe dera oferecendo-lhe uma maçã de ouro trazida do Jardim das Hespérides e que lhe conferiria a imortalidade. Ana não queria ser imortal, só desejava viver mais tempo, desejava isso todos os dias e sabia que iria continuar a desejá-lo sempre, mas a imortalidade não.
Tentou explicar, mas não era necessário, Irene intuiu, percebeu que é o amor que mantém vivos os humanos e que Ana não desejaria sobreviver a todos quantos ama e amará ainda, mas a sua alma de fada prevaleceu à sua compreensão e insistiu: “Não a comas, então, mas leva-a contigo como um amuleto e para te lembrares de mim.” – Ana aceitou.
Irene tinha todo o tempo do mundo, mas Ana não, só tinha o dela e precisava terminar a viagem para sair do caldeirão e seguir rumo ao próximo nível. Olhou as horas no cantinho inferior direito do ecrã, “meu deus! Que tarde! preciso desligar. Que pena, estava a gostar,” – suspirou resignada “mas tenho mesmo de ir dormir. Chega por hoje, amanhã há mais, não tem importância, é só um jogo de computador.”
Não teve coragem para sair sem dizer nada, precisava despedir-se da ninfa, mesmo sabendo intelectualmente que ao fechar o jogo este simplesmente acaba, não tem depois “Tenho de ir, até amanhã.” – despediu-se com um sorriso no rosto. A ninfa ainda perguntou, nesse último momento de vida, em mais um vislumbre de identidade própria: — Que idade tens? “8 anos”, respondeu a menina, sorrindo agora para si mesma com a pequena mentira que o seu avatar acabara de dizer. Afinal, que diferença poderia fazer, a uma ninfa virtual, se omitira o cinco antes do oito?
31 Agosto 2022
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