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Morlaix

Automatocracia

Ideias

2014-09-23 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Com toneladas e mais toneladas de hortícolas sem destino, investimento, encargos e suor volvidos lixo pelo capricho de confrontos leste-oeste, insultados com um cheque compensatório de 23 cêntimos por exploração (!), os agricultores de Morlaix saíram à rua. Cristalinamente esclarecido que eram ignorados, ou pouco mais que ouvidos por funcionários superiores displicentes, quando muito por um ocasional subsecretário de estado, que tão depressa os atendia, como logo do espírito afastava maçada tamanha, os horticultores de Morlaix estrumaram ruas, estroncaram, vandalizaram e incendiaram instalações oficiais - uma Mútua Agrícola, atada de pés e mãos perante um prejuízo maciço, extensivo a todos os subscritores, e a Repartição de Finanças local, símbolo de um Poder distante, cego e arrogante, dum Poder indisponível para rever taxas e outras obrigações fiscais, não obstante a calamitosa quebra de rendimento dos produtores por força duma situação pelo próprio Governo promovida.

Aguardo ansiosamente o resultado das investigações aos distúrbios de Morlaix. As autoridades pedem publicamente fotografias e vídeos de forma a identificar os autores dos actos de vandalismo. Imaginem só: como se uns e outros não se conhecessem muito bem! Mas tão bem, tão bem, que nenhuma força policial se abeirou dos eventos nas horas em que os desacatos se desenrolavam. Ainda apareceram os sapadores, que facilmente foram convencidos a regressar tranquila- mente às instalações da corporação.

Morlaix é um assunto que não vale a pena investigar: é incómodo desde a primeira hora. Mais que os motins raciais das cinturas urbanas em 2005, mais do que umas montras partidas de lojas de luxo e hamburguerias MacDo - rasto usual nas manifestações de radicais de esquerda ou anarquistas, nos desfiles ecuménicos de contestação ao G7 ou ao G20 -, Morlaix abala as bases do Estado. Razão maior, dirão, para que se esclareça cabalmente, se apurem responsabilidades e se puna de modo exemplar!

Bem pelo contrário, por paradoxal que pareça. Trazer nomes à praça pública, castigar penal e financeiramente os revoltosos: impedirá tal, que perturbações similares ocorram noutro recanto da Bretanha? Não! É claro que não, desde que as mesmas condições se mantenham. Protelando-se o impasse das relações comerciais leste-oeste, mostrando-se o Tesouro francês e os cofres de Bruxelas incapazes de acomodar os prejuízos astronómicos dos particulares, uma punição que se imponha aos amotinados só aumentará a sensação de desprotecção e repulsa de todos os demais.
Morlaix é uma catarse, para quem a protagonizou, e para os que neste episódio expurgam angústias pessoais. Não lhe tocando mais, o assunto morre lentamente, desvitaliza-se. Os próprios não quererão falar dele. A raiva dumas horas de sexta-feira persistirá durante anos como surda vergonha.

Depois, presseguir criminalmente laboriosos proprietários rurais, cidadãos de hábito exemplares, pilares da comunidade, devotos frequentadores da Igreja, animadores de grupos etnográficos, votantes regulares dos partidos do poder, porventura membros destacados de comissões de honra de candidatos eleitorais - bom, trazer pessoas como estas à Justiça acarreta mais mal-estar que tranquilidade.
Para lá dos aspectos iminentemente legais, a Justiça funciona como um estabilizador social ao serviço da maioria.

É fácil apontar o dedo a minorias ou franjas marginais, com a convicção de que constituem o “outro”, um externo ou extremo eventualmente tolerável. É fácil experimentar um sentimento de força quando fazemos triunfar o justo poder dos tribunais sobre os descamisados, os desdentados, os iletrados, os pequenos escroques doutra cor ou de outro credo. Mas seria com agravado desconforto social que o Estado levaria ao banco dos réus os amotinados de Morlaix. A revolta de Morlaix está no coração da maioria. Não há quem não aspire a deitar fogo a uma repartição de finanças, não há quem no seu íntimo não desejasse ter trazido uma cadeira ou um dossier para a fogueira exterior.

Por conseguinte, o melhor é não investigar, o melhor é não reunir provas, o melhor é fazer de conta que não aconteceu. Mais do que a afronta, mais do que a delapidação de ediícios públicos, há de preocupar ao Estado a reversão dos valores e atitudes da burguesia rural. Conservadores por hábito, zelosos defensores da propriedade e do património, deram os horticultores de Morlaix em perigosos revolucionários. Deixados a sós com as suas memórias, esgotarão silenciosamente a fúria que uns alimentaram a outros. Por outro lado, perseguidos, não terão dificuldade em encontrar quem os defenda acirradamente, até por negaça e desgaste do Governo. O caso arrastar-se-á pelos tribunais, facilmente se tornará numa acusação ao regime e às incongruências da política externa europeia.

Compreende-se que o governo francês tema que o episódio se repita.
Assim como assim, as exportações de vegetais estão congeladas, no horizonte não se vislumbram sinais de melhoria, e nos orçamentos não há dotações que absorvam o impacto dos produtos que não chegam ao mercado. Vale dizer, o descontentamento e a tensão estão para durar.

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