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Conta o Leitor

2017-08-09 às 06h00

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Ana Maria Monteiro

Sucedeu há uns anos. Vem-me hoje à memória a propósito do dia da mulher.
É, no entanto, uma associação de ideias algo estranha. Mas conto a história na mesma.
Depois de uma longa estada em Madrid, onde estivera destacado por uns meses, regressava a casa, comodamente instalado num desses compartimentos de que, à época, estavam dotadas as carruagens de primeira classe daqueles comboios. Eu viajava junto à janela, de costas para a paisagem que, assim, surgia como uma permanente e um tanto monótona surpresa e ele, de frente para mim, também à janela, cujo cenário ignorava completamente, imerso que se encontrava na leitura do jornal, dava-me a estranha e um pouco incómoda sensação de o conhecer. Este 'dejá vù' inicial foi adquirindo contornos de realidade até que já sabia perfeitamente identificar a sua origem. A probabilidade de não estar enganado era nula, pensava eu enquanto a certeza continuava a instalar-se em mim, de forma tão garantida que deve ter-se tornado quase palpável. Ele, pelo menos, sentiu algo e reagiu. Com o seu ar fora de moda, soergueu ligeiramente o olhar e fitou-me arqueando muito ao de leve a sobrancelha direita, numa expressão que me embaraçou e intimidou um pouco. Tinha um ar grave e respeitável, no seu fato antiquado e de bom corte que cobria um corpo rechonchudo. O chapéu de coco, completamente fora de propósito noutra criatura qualquer, acentuava-lhe o todo.
Senti que devia uma explicação: - Desculpe, faz-me lembrar alguém. 
O sobrolho arqueou-se mais, de forma quase imperceptível, mas sem dúvida voluntária.
Desabafei: - Estou capaz de jurar que é o João Ratão.
- E sou.
- Mas como? É impossível! Não morreu há tempos imemoriais, cozido e assado no caldeirão?
E ele, imperturbável: - Como vê, a resposta é negativa.
- Então a história não foi assim?
- Claro que não, meu caro. Interesses e compadrios. Os autores sempre foram uns vendidos.
A minha estupefacção devia ser bem visível pois agora era ele quem aparentava ter que justificar-se: - Está a ver, eram outros tempos, a Igreja não aceitava um casamento que não poderia consumar-se e render filhos e o autor cedeu, e decidiu dar-me um fim diferente do previsto.
- Oh! E a carochinha?
- Nem me diga nada, meu caro. Chorava e berrava que nem uma ovelha desmamada. Queria a todo o custo casar comigo e que eu a comesse. Por isso, fiz-lhe a vontade.
- Como assim?
- Ora! Comi-a. Que outra coisa poderia fazer para a calar?
- Comeu-a?!
- Sim, sim, no sentido possível e literal do termo.
- Que horror! Que história tremenda! E como deve ter sofrido.
- Nem deu por nada, acredite. Como deve calcular, foi numa única dentada. Trabalho rápido, limpo e eficaz, que satisfez os propósitos de ambos.
Eu estava sem palavras. Meio estúpido, balbuciei: - E os cinco reis da caixinha?
- Quais cinco reis, qual carapuça! Nunca houve nada. Mais um truque do autor. Bem vê, naquela época, era suposto as mulheres pagarem para casar com os homens.
E, entre dentes, ainda murmurou: - Como ainda hoje, nós vendemo-nos e as putas são elas. 
E de novo para mim: - De forma que saí de cena e tive que me afastar.
A minha perplexidade era tal que não encontrei nada para dizer de imediato e ele, aparentemente aliviado, regressou à leitura do seu jornal e assim continuou até sair, duas estações antes de mim. Nessa altura, muito circunspecto, levantou-se, tocou ligeiramente no chapéu, disse “boa tarde” e saiu.
Tentei acompanhá-lo com o olhar, mas de imediato o perdi de vista por entre a multidão.
Quase a chegar ao meu destino, a impaciência do regresso a casa, fez-me abrir a janela.
Lá estava ela à minha espera.
Acenei que nem um danado até que me viu e correspondeu.
Um breve estrépito percorreu-me todo o corpo, senti-me a carochinha à janela e receei tolamente acabar como ela.
Felizmente somos da mesma espécie, o que lhe permitiu comer-me longamente e conforme quis nessa mesma noite e com grande satisfação para ambos.
Por acaso foi num dia 8 de Março.

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