Correio do Minho

Braga, sábado

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Mudança involuntária

A maior reunião de filósofos do mundo

Conta o Leitor

2020-07-16 às 06h00

Escritor Escritor

Autor: Manuel C. Correia

José Camargo passeava todos os dias o seu cão, aproveitava e dava a sua caminhada. Um homem saudável e com hábitos devidamente planeados. José Camargo nunca perdeu uma noite de sono, todos os dias marcava hora para dormir, sistematicamente aquela hora (23h 30 minutos) deitava-se e puxava de um livro, para ler sempre 10 páginas, nem mais nem menos. Trabalhava num velho escritório de uma empresa de consultoria, num dos velhos prédios do centro histórico da sua cidade. Um dos seus poucos vícios era o café, mas não exagerava. O seu gabinete tinha uma janela e sempre que de manhã abria para entrar ar fresco, vinha um cheiro a café tão delicioso, e, José Camargo que até nem era consumidor de café passou a ser.

Quando chegava a casa de mais um dia de trabalho, dava um beijo à sua esposa, mudava de roupa e lá ia dar a caminhada com o seu cão. Passavam pelo parque da cidade, sempre andar. Todos os dias o ritual era sempre o mesmo. Quando chegavam a casa, o cão bebia água e o dono também, depois José Camargo tomava um banho e fazia companhia à sua querida esposa.

A vida é feita de hábitos bons e maus, mas não deixam de ser rotinas. Num desses passeios pelo parque da cidade, José Camargo sentiu uma dor aguda na cabeça, já tinha tido algumas mas nada de especial. Esta era profunda, de tal ordem que agarrou com as duas mãos a cabeça e de repente caiu no chão. Um jovem que ia a passar, viu aquele homem a cair como uma árvore abatida e depressa ligou para o 112. Enquanto José deitado numa maca de uma ambulância se dirigia para o hospital o seu cão manteve o seu hábito e voltou para casa. Para surpresa da sua dona que perguntou pelo seu dono, o cão não respondeu claro, mas foi quase em simultâneo à entrada do cão que, o telemóvel tocou! O seu marido está no hospital. Uma voz feminina falou do outro lado.

Diagnóstico, um cancro benigno no cérebro! Um cancro benigno mas que devido ao seu constante crescimento estava a provocar pressão cerebral tinha que ser removido. Numa zona operável mas com um grau de dificuldade de operabilidade enorme. Apesar de haver possibilidades de perdas de algumas faculdades, José Camargo assinou autorização, não havia outra solução.

A operação foi um sucesso, José Camargo após um período de 8 horas de convalescença, acordou aparentemente normal, sem qualquer mazela, tudo normal, falava normal, levantou-se e foi à casa de banho. Sentia aquela pressão na cabeça, devido à cirurgia, nada mais. Ao fim de 8 dias foi para casa. Por imposição médica, não podia dar grandes correrias, muito menos saltar. Foi aguentando durante uma semana sem sair de casa. Via televisão, mas estava sempre a mudar de canal à procura de algo que o surpreendesse o que raramente acontecia e na maior parte dos casos acabava por apagar a televisão. Puxava de um livro, ia até à janela ver as pessoas a passar. Os dias passavam a um ritmo lento, como se vivesse numa outra dimensão de tempo dilatado.

Um dia, avistou, na rua um músico a tocar viola e a cantar, quando a esposa chegou, José cantava as mesmas músicas completamente afinado e sem nenhum engano nas letras, a esposa ficou admirada, pois não conhecia essa faceta do marido. Passado um mês em casa, José já dava os seus passeios com o cão, estava a voltar às rotinas habituais. Mas havia novas rotinas. Uma delas era no fim do jantar passar por um café onde havia um pianista, e, tomavam um café ao som de belas melodias tocadas no piano. José estava fascinado pela música, nunca tinha sentido tanto apreço e paixão pela música. Como se a música fizesse sempre parte dele. O seu coração batia a cada nota tocada pelo pianista. Numa visita ao café concerto José quebrou o protocolo, enquanto o pianista fez um intervalo, e, a sua esposa tinha ido à casa de banho, José avançou para o piano, e, começou a tocar milagrosamente, pois ele nunca tinha tocado piano, nem sabia nada de música! A princípio só uma menina o ouvia com atenção e admiração, depois o pianista levantou-se do bar e ficou parado no átrio a ouvir o seu substituto! A sala lentamente começou a ficar silenciosa, apenas a música no ar, a esposa vinda da casa de banho, parou no meio da sala sem saber o que fazer. Aquele homem não podia ser José Camargo, o seu marido. O café ficou repleto, na rua, as pessoas pararam em frente ao café e formaram um mar de gente, o café concerto tinha finalmente um ilustre músico, que, fez magia, todas as notas certas sem pauta, um simples empregado de escritório tocava como um génio. José continuava a tocar, música após música como se estivesse só! Quando a última nota se ouviu, uma salva de palmas estrondosa fez José descer à terra.

Virou-se para as mesas e agradeceu. No seu pensamento vagueavam ideias estranhas, desordenadas, muitas dúvidas. Afinal quem era ele, como foi possível tocar piano como um mestre? Desceu até junto da esposa, com os cordões dos sapatos desapertados. Após ser felicitado por muita gente, até o pianista em tom de brincadeira lhe disse, que assim vou ficar sem emprego! Mas foi mesmo a brincar, o pianista estava, simplesmente espantado e felicitou-o pela beleza e perfeição da música.

Quando o frenesim de felicitações acalmou, a esposa de José chamou atenção dos cordões desapertados. Após várias tentativas para apertar os cordões, José levantou-se e pediu à esposa para ela os apertar! Naquele momento José percebeu que tinha mudado. Todas as músicas que ouvia, tocava-as sem pauta e na perfeição, mas tinha perdido faculdades tão simples como apertar cordões!

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