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Não me fio em ti

A responsabilidade de todos

Não me fio em ti

Voz aos Escritores

2020-01-03 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Não me fio em ti. Na gramática das emoções, que sentido, que profundidade tem esta declaração? Os latinos construíram um verbo «fidare», com o significado de acreditar em outrem, de estabelecer com o outro uma relação de confiança. Confiar designa esta relação que, numa deriva semântica não muito extensa, conduz alguém a vender fiado, a fiar os seus produtos. Vender fiado, ou a fiado, traduz uma crença, que contém os traços fundamentais da honestidade: esta pessoa é boa, pratica o bem, posso, portanto, confiar nela. Não me fio em ti poderia, no entanto, significar a minha incapacidade para me ligar ao outro, a minha incapacidade para encaixar em qualquer fio emocional.
E, aqui, por deriva homográfica, «fio» deixaria de ser verbo e passaria a ser nome. A origem deste nome já não é «fidare», mas «f?lum» que, por apócope e síncope, desembocou no nosso «fio», literal e figurativamente tão profícuo na língua portuguesa.

Figurativamente, como tão bem sublinhou Cecília Meireles, no fio da respiração rola a monotonia da vida. Para que servirá o fio trémulo em que rola o nosso coração? Para pousar nele as lágrimas que choramos em tristes e ledas madrugadas? Quem dormirá horas a fio em tão tristes e pesarosas noites?
Um dia li «O fio da navalha», de William Somerset Maugham, e compreendi o valor metafórico da expressão pelo comportamento da personagem. Viver numa linha de fronteira entre o bem e o mal, entre a vida verdadeira e a morte física, ou simbólica, é um exercício dificilmente entendível por mentes logicamente organizadas, com norte identificado. Por falar em norte, lugar da minha geografia, tive sempre dificuldade em compreender porque há um fio norte, se não há um fio sul. Eu sei que, mesmo no âmbito da adjetivação, tais factos acontecem, e é por causa disso que nos norteamos ou desnorteamos, mas não «suliamos». Guiamo-nos pela agulha, que aponta a Norte.

Simbolicamente, é no Norte que está o bem, a perfeição. Dir-me-ão os sulistas que o centro de gravidade terreste está a mudar, que a agulha brevemente apontará a sul. Tudo natural, aguardemos, pois. Indago-me: haverá pelo Sul fios de lítio suscetíveis de exploração? Se sim, a agulha real e simbólica muda. Se não, lá vai o Norte apanhar por tabela. Fio de arame, de cobre, de ouro ou de soldadura, é, pela natureza mineral das coisas, muito virado a Norte.
O mesmo não afirmo para o fio de ovo, pesca, concha, conta, seda, lã, ou algodão, mais habituado a extensas latitudes. Tenho um respeito muito particular pelo fio de cabelo, numa idade em que já se vê de lupa. O mesmo acontece com o fio de azeite e o fio de sol. Aquele por me temperar o prato, por me dar lípidos e polifenóis. Este por me fornecer de vitamina D, ou melhor, uma hormona esteroide muito amiga da pele e do meu corpo.

Há em tudo o que acabo de expor um fio de ligação, evidentemente de valor nocional, que estabelece contacto entre categorias gramaticais diferentes e expressões de mesma base semasiológica. Na mesma linha, posso, portanto, afirmar que percorrer o labirinto de fio a pavio não é nenhum erro linguístico, porque até um labirinto tem um princípio e tem um fim, e, a haver erro, a culpa é de Dédalo, que o construiu e autorizou as andanças do terrível minotauro. Nunca percebi muito bem por que razão a vida de Teseu esteve por um fio, se Ariadne até lhe deu um, bem comprido, para o guiar naquela confusão. Não consta que pingasse um fio de sangue, mas que Teseu lutou com o monstro, lá isso lutou. Triste, triste, era o desequilíbrio do amor. Teseu amava até ao infinito e sacrificou tudo por ela. Ariadne, parece que nem por isso. Acontece. Acontece nos mitos como acontece na vida. Ter-lhe-á ela dito «não me fio em ti» e ele, meio louco, terá tentado suicidar-se nos braços enleantes do minotauro? Pergunto eu, que gosto de brincar com estas coisas.

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