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Navegar a anarquia global

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Navegar  a anarquia global

Ideias

2025-03-06 às 06h00

Bruno Gonçalves Bruno Gonçalves

Éfrequentemente atribuída a Vladimir Lenine uma frase que espelha bem o estado do mundo: “há décadas em que nada se passa e há semanas em que se passam décadas”. Desde a tomada de posse de Donald Trump, no passado dia 20 de janeiro, a principal constante tem sido a disrupção a todo o nível. A barragem de ordens executivas que emanam da Casa Branca tanto serve para desfazer traves mestras do Estado americano, como para subverter princípios elementares da ordem internacional, construída pelos próprios EUA.
Ainda que as primeiras sejam verdadeiramente preocupantes - umas deixarão ainda mais vulneráveis milhões de cidadãos americanos mais pobres, outras dificultam o combate ao crime e fraude financeira - são medidas cujo impacto atinge essencialmente a dimensão interna. Por mais que reprovemos essa política doméstica da administração Republicana, o nosso foco deve incidir sobre o segundo conjunto de medidas, ou seja, aquelas que estão a revolucionar as relações internacionais e a colocar em risco a segurança da própria Europa.
Nesse sentido, a lastimável coreografia na Sala Oval, onde se cozinhou uma reprimenda pública da dupla Trump-Vance ao Presidente Zelensky, seguida da suspensão oficial do apoio americano à Ucrânia, foi o culminar do comportamento “bully” para com (antigos?) aliados e representa uma demissão assumida do papel dos EUA como potência defensora da ordem internacional. As imagens são embaraçosas, mas infelizmente deixaram de surpreender - o estilo é propositadamente esse e o objetivo é projetar força ao destratar quem se pode. Isto é, na prática, a suplantação do respeito pela liberdade dos povos pelo primado da força bruta.
Tudo isso contrasta com a estabilidade no período pós-queda da URSS, onde a grande tendência global foi o crescimento da interdependência entre Estados, através do comércio, das migrações e da criação de regras comuns (entenda-se, o Direito Internacional) para a convivência geopolítica - um contexto que, apesar das suas limitações, condicionava as ambições mais agressivas dos mais poderosos, protegendo os países mais pequenos. Com a entrada em cena do Trumpismo 2.0, onde os princípios morais deixaram de configurar qualquer peso na política externa, é preciso reconhecer que esse Mundo acabou.
Estamos a regressar ao anarquismo internacional, situação onde cada Estado assume a defesa dos seus interesses geopolíticos e as regras emanam, em particular, de negociações diretas entre as grandes potências e não de organizações internacionais. Não é o Mundo que preferimos, nem que escolheríamos, mas em cima da mesa não está a opção de ignorar a realidade. E assim, a semana fica marcada pelo plano de 800 mil milhões de euros para rearmamento europeu, apresentado pela Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, esta terça-feira.
No curto-prazo, de forma a permitir apoio constante à Ucrânia e colmatar o descompromisso americano, este plano contempla uma componente europeia baseada em fundos do atual Orçamento Europeu e a criação de um novo mecanismo de 150 mil milhões em empréstimos, destinados a apoiar a aquisição imediata e conjunta de equipamento militar. Só este apoio permitirá a Zelensky e ao povo ucraniano continuar a defesa da sua terra e da sua liberdade, abrindo portas a uma negociação de paz que seja realmente justa e sustentável.
Não obstante, a grande fatia será proveniente dos respetivos Orçamentos dos 27 Estados-membros. 650 mil milhões ao longo de quatro anos, valor que corresponde ao aumento médio da despesa pública em 1.5% do PIB. Durante esse período, de forma a evitar qualquer procedimento por défice excessivo, a Presidente von der Leyen propõe a ativação das cláusulas nacionais de derrogação das regras orçamentais europeias. Esta é a oportunidade para, de forma articulada e coordenada, os países da União Europeia investirem na sua defesa.
Esta segunda parte, em particular, representa um importante sinal político: a Europa não quer sucumbir ao facilitismo de gastar fundos a importar equipamento militar americano, mas sim a investir de forma estratégica no desenvolvimento da sua base industrial. Depois de décadas onde imperou a maximização da eficiência económica, levando à deslocalização em massa das indústrias europeias para outras geografias, estamos perante um momento de viragem. Reconhece-se que, apesar dos benefícios do comércio internacional, há que manter controlo de cadeias de produção essenciais para a nossa autonomia.
De Bruxelas e das demais capitais europeias chegam-nos provas de que, ao contrário do que aconteceu entre 2017-2021, não vamos simplesmente depositar as nossas fichas numa esperança singela que Trump seja um fenómeno passageiro. Ainda bem.
Na melhor das hipóteses, se os internacionalistas - cada vez mais exclusivos ao partido Democrata - voltarem à Casa Branca e retomarem uma trajetória de diplomacia construtiva, a União Europeia poderá adotar uma postura colaborativa, mas mais independente, que ajude a reconstruir uma ordem global estável e justa.
Na pior das hipóteses, se tivermos de continuar a navegar as marés instáveis de um sistema internacional anárquico, onde as grandes potências tentam dividir o Mundo entre si, pelo menos a UE terá feito o seu caminho. E só reconstruído as suas forças poderá garantir um lugar à mesa. Sem belicismo e certamente sem imperialismo, mas também sem ingenuidade.

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