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Nilo

Segurança na União Europeia: desafio e prioridades

Nilo

Escreve quem sabe

2025-01-25 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

«No nosso País [Portugal] é o céu que cultiva os campos; é ele que rega, que amadurece, que conserva, que manda a chuva, o calor, o orvalho. No Egito, o céu é indiferente à vida dos homens: limpo, liso, profundo, eterno, implacavelmente azul, tem a hierática indiferença dum Ídolo. É o Nilo que trabalha a terra».

Eça de Queiroz
Trecho retirado do livro "O Egipto - Notas de Viagem.
5a edição. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1946."


Escrevo com os olhos a sangrar. Uma dor não pelo que toco, mas pelo que sinto que vou ver um dia destes. É uma questão de tempo. Bem longe, podemos sentir que a infância nos escapa. Pode ser pelo céu que temos em cima de nós ou por um simples televisor que nos rasga essa mesma infância. Hoje parei numa nota de um jornal, como paro, por vezes, no que oiço e vejo em silêncio, para escrever o que tenho dentro de mim. Nem sempre é esta revolta e impotência. Quem me acompanha, sabe que posso deixar tudo para parar numa bosta de vaca, no calcar do feno no palheiro ou a ida à igreja para ouvir o padre e ver o oco dos olhares como se estivessem, já fora no átrio, no Coliseu de Roma.
O que me dói mais é que tenho em mim a descrença por quem tem poder. Acreditem, que tento compreender. Tenho anos e obrigação disso. A questão está no olhar. Sempre no olhar. Aquele que te dá força ou te esvazia. Nisto, não há brandura. Há uma tempestade sanguinária por muito que tentemos sorrir e abraçar sem holofote.
A água. O ouro do futuro. A escassez que irá matar milhões. Componho estas letras e tenho diante de mim as vozes, os sachos às costas, as galochas por entre pedras e rigueiros em caminhos mal-amanhados, o lusco-fusco ou a noite cerrada, de homens com barba por fazer a galgar serra acima em busca da água no Verão para regar os “jericós” espalhados pelos mosaicos da aldeia e para encher as poças não viesse o fogo maldito aparecer pela calada da noite cobarde. Este pedaço de tempo amplo faz-me ter o meu amado avô na palma da mão. Sinto-o como se sente a areia na praia, aquela que vence no escorrer por entre os dedos. Neste instante, nada me derrota.
É assim que vejo o Nilo, espinha dorsal do Egito, o mais esmagador rio do mundo em extensão (7088 km). Leio que está a sumir este gigante que passa por 10 países africanos até desaguar no mar Mediterrâneo. Está em rugas, ameaçado por diversos fatores ambientais, como a poluição por metais pesados, a erosão costeira e a intrusão da água do mar. De nada vale, em terras da resiliente Etiópia, a grande barragem do renascimento etíope (GERD), uma obra monumental que encarna as aspirações de desenvolvimento de um país e, ao mesmo tempo, o epicentro das tensões geopolíticas entre duas potências regionais que agora estão ‘condenadas’ a entender-se.
O homem. Sempre a ação do homem, o único que mata por prazer. Até quando?
Diz-me avô. Que pensarias tu se a nossa lobada do Curisco não desabasse nos nossos lameiros do Mindadura? O que seria de nós se a água da torna, aquela por onde andaste noites ao luar para ter um fardo de feno a mais para alimentar a nossa Castanha ou a nossa Marela? Rasgo-me todo. Rasgo-me porque sei o que é cheirar os carpins molhados, a fumegar perto da lareira, e os socos abertos ou as galochas roídas pelos caminhos sem luz.
E tu, meu pai? Meu imenso pai. Que pensarias tu quando me fizeste descer, noite dentro, ao lameiro do Raposeiro, para termos mais um cibo de água? Desci como descemos para o precipício. Acredita que ouvi, nas noites sem luar, raposas, serpentes e cigarras. Mas ouvi-te a ti. Foi a minha força. Em eco permanente. Aí soube que me querias. Que não me querias perder.
Senti-me um lobo, sem cordeiro na boca, a marchar para casa. Ouvi tanto zumbido, mas tanto. Nunca queiras saber o exército de sons que padeciam na minha alma. Mas, tinha-te a ti. E por ti, nada nem ninguém me derrotaria. Lembro-me quando vislumbrava a subida. A luz da casa, nas traseiras, que tu raramente a ligavas. Via a tua sombra e com ela marchava como se marcha para o indomável na secreta esperança de teres orgulho em mim. A ti te devo esta minha força. Não é muita. Culpa minha. Mas quando me fazem, quando não acreditam em mim, recordo sempre o teu semblante áspero a dizeres que tenho sempre casa. Aqui, renovo-me e sigo em frente com olhos de lobo.
Regressamos ao imenso Nilo que, para mim, é regressar ao alto do Larouco. Picar-me pelo vento e dizer que isto vale. Isto é vida. Não, não o disse na altura, digo-o hoje quando sinto que ninguém o vê com a alma da subida do gadinho. Emil Ludwig, com sangue judaico, falou dele (Nilo) em mais de 600 páginas (1937). Aconselho que passem o olhar por esta obra que revela o quão belo o Mundo é.
A meu ver, sem capas de jornais, o que conta é como o homem bebe e saboreia o que tem pela frente. Eu sou um fazedor de saudade. Luto pelo que vejo perder-se. Por aquilo que me foge das mãos. Tudo pode largar-se. O que não se larga de mim é o cio. O cio do vislumbre. Do ralho do que não entendemos e daquilo que sabemos que irá contar para a vida. Ninguém me pode matar, porque o tiro já foi disparado e saiu ao lado.

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