A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2020-09-04 às 06h00
No fim do verão as crianças voltam,
correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem. […]
A que vive dentro de mim
também voltou; continua a correr
nos meus dias. […]
Eugénio de Andrade
Tal como o voo de uma perdiz, a cena fora curta, embora com um cenário de indescritível dureza. Pensara o pior. Foram muitas as vezes que tive medo de não voltar a correr no fim do verão. Tive medo de não poder colher as maçãs da porta da loja que havia de comer na noite de Natal. Tive medo que a nascente secasse e eu não pudesse regar o laranjal e cuidar das couves- galegas do quintal, pois a minha cabeça andava nas berças por essa altura. Todos os dias o medo do invisível desconhecido me roubava um gesto. Todos os dias ficava com os braços cansados dos abraços que não dava e dos afetos que continha e me afastavam de mim, daquilo que vinha deixando de ser. Mesmo conhecendo o caminho, a cada instante me perdia no vazio cruel da distância. Na verdade, estava mais longe de mim mesma, porque sou também feita dos outros. Parei no tempo. Deixei de crescer e julguei ter perdido aquela sabedoria pueril das coisas que realmente importam. No fundo de mim, sentia-me a crescer unicamente por fora, ou melhor a envelhecer quando os meus ombros encolhiam e as pernas davam cada vez passos mais curtos. Aquelas brincadeiras incautas, e que tratam o mundo com espanto natural e sem cerimónias, pareciam ter dado lugar ao fingimento de que tudo iria ficar como estava antes. E que saudades eu tinha daquela criança que tratava a poesia por tu! Por isso, ao sentir de novo essa vontade inata de sonhar, de fantasiar, de fazer de conta, de caminhar pelo campo e colher papoilas e frutos silvestres, volta também a vontade de gargalhar a noite e apanhar bocadinhos de sol pela manhã. Penso agora que está recuperada a infância, adormecida em mim, pois já não vejo os fragmentos de isolamento daquela inusitada e estranha forma de vida, que me impunha um silêncio ensurdecedor e sufocante. Não era aquele silêncio inquietante, veículo de excelência para cultivar alguns dos estados de alma mais férteis e mais produtivos, mas um silêncio que me tolhia o pensamento.
Impunha-se, portanto, um estremunhamento que me desse a força e a capacidade de poder abraçar a vida, de a escutar até ao fim, de a viver de uma forma apaixonada e arrebatadora como um desafio. “A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insomnia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos” diz Fernando Pessoa.
Para compensar esse distanciamento de mim mesma refugiava-me nos livros. Nos livros e na imaginação, pois aquela ditadura doméstica não me deixava qualquer espécie de liberdade. Parafraseando Mia Couto, tenho consciência de que não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. E foi assim que decidi fugir da casa que morava provisoriamente em mim. Havia de revitalizar o espaço da criança para voltar em segurança sem perder o entusiasmo, o interesse e a curiosidade que levara da infância. A poesia não se pode afagar na mão como um pássaro doente, é preciso libertá-la: “Abre a janela, e colhe! /É o que quiser a tua mão atenta:/Água barrenta, /Água que molhe,/ Água que mate a sede..// Abre a janela, quanto mais não seja/Para que haja um sorriso na parede!”, apela-nos Miguel Torga.
Então, abro devagarinho a janela da alma. Os meus versos alongam-se à janela. O sol bronzeia-lhes as sílabas, o vento arrasta-lhes o ritmo, o perfume dos canteiros suaviza-lhes as rimas. Desta janela, vejo agora outras janelas. Janelas das viagens de estudo e janelas de aventura em que se morre de saudade. E há esta. A minha. Janela desenhada de lágrimas e de sorrisos, bordada com os sonhos e as gargalhadas de infância.
Sinto agora que nada está perdido. A criança que vive dentro de mim acaba de me alugar para sonhar…
15 Março 2024
08 Março 2024
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