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A Cruz (qual calvário) das Convertidas

Ideias

2010-11-21 às 06h00

Felisbela Lopes Felisbela Lopes

De olhos humedecidos e de mãos trémulas, aquela mulher embrulhada num casaco frio deu-nos uma resposta de uma violência extrema, quando lhe dissemos que, àquela hora, deveria estar em casa: “Casa? Eu não posso ir para casa, porque não tenho casa”. Foi já há algumas semanas, numa das velhas ruas do Porto. Aqui e ali, o rosto daquela octogenária ressurge-me como que a lembrar-me quotidianos reais que, amanhã, poderão ser os meus.

Descíamos a rua íngreme em passo apressado, empurrando umas malas com jornais escolares. Para trás tinha ficado uma reunião do júri do “Público na Escola” numa das salas aquecidas da redacção daquele jornal. Em direcção oposta a nós, caminhava uma mulher de certa idade em passo vagaroso e tristonho. Como o passeio era estreito, descemos a via para abrir caminho. O agradecimento da senhora abria conversa. Notava-se que queria falar, embora tremesse um pouco. O que era natural, dada a época do ano e a hora adiantada da tarde. “Tem de ir para casa. Está a cair a noite e o frio começa a apertar”, disse-lhe um de nós. A resposta foi devastadora. “Não tenho casa”. Ao mesmo tempo, os olhos ficaram cheios de lágrimas. Fitei a cara da senhora uns escassos segundos que, para mim, pareceram uma eternidade. Nenhum de nós soube o que dizer. Perante uma realidade brutal, as palavras não chegam.

Não me lembro bem como nos despedimos dela, mas retomámos o caminho em silêncio. Neste tempo, vou pensando, a cada passo, nessa mulher. Lembro-me dela, quando ao final do dia regresso a casa. Para mim, como para (quase) todos nós, ir para casa é um gesto natural. Circulando por espaços diferenciados que não são os nossos, (quase) todos sentimos um lugar como pertença. Sim, mas há pessoas para quem isso não é uma realidade.

Ontem, no “Correio da Manhã”, publicava-se uma reportagem intitulada “Desempregados caem na miséria”, destacando-se aí o número crescendo de pessoas que dormem na rua. Pessoas relativamente novas que perderam empregos que pensavam ser estáveis. E ficam perdidas no meio da rua. Literalmente.

Por estes dias, a Caritas anunciou que os pedidos de ajuda têm aumentado significativamente. Ontem, o “Jornal de Notícias” escrevia que esta organização está a receber cada vez mais pedidos de auxílio de famílias em dificuldades. E não é só comida. Agora, também pedem ajuda para pagar a casa, a luz, a água e até os medicamentos. Há uma semana, no “Expresso”, uma família endividada confessava que ia cortar a electricidade para engrossar o lote de poupanças que vinha fazendo. Aí está outro exemplo que muitos de nós tem por adquirido: acender uma lâmpada. Em certos lares, este gesto começa a ser subtraído das rotinas diárias. Para economizar dinheiro que deixou de haver.

São sombrios os tempos que correm. O que podemos fazer? Ontem no “Expresso”, a responsável pelo Banco Alimentar Isabel Jonet motivava-nos a arregaçar as mangas para ajudar causas colectivas. É um bom caminho. Principalmente nesta conjuntura em que tantos de nós atravessam dificuldades sérias. Há também outras vias. Cada um de nós poderá sentir-se responsável pelo bem comum a partir da sua esfera de acção individual. Com gestos pequenos.

Um exemplo: este ano, venho incentivando os meus alunos da Universidade a abrirem os estores das janelas e a apagarem as luzes da sala. A poupança não será significativa, mas esta educação para o uso equilibrado de recursos que são de todos nós afigura-se urgente de incrementar. Poderemos replicar este tipo de gestos numa quantidade infindável de contextos. E, com isso, tornamo-nos cidadãos melhores. Mais conscientes de que o bem comum se reflecte em permeância na nossa felicidade individual.

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