Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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O aborto

Liberdade, não te ausentes de mim!

Ideias

2013-10-28 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Na linguagem corrente empregamos esta malfadada palavra para designar algo declaradamente inacabado, imperfeito, grotesco. Nesta linha, o orçamento que o governo prepara com tanto afã não é bom nem mau, não é justo nem injusto, não é recessivo ou sequer o possível: é um aborto.

Pelo menos é essa a minha profunda convicção. Transpira para a opinião pública que Paulo Macedo teria desancado a equipa do ministério das finanças pelo evidente desacerto de contas posto a conselho no último domingo. Acredito piamente que Paulo Macedo só com meio olho consiga ver quantos gatos há num amontoado de cálculos mal enjorcado, e nem precisa de ser muito sagaz, já que não há memória de algum dos orçamentos precedentes ter batido certo ao longo destes últimos anos.

Se a solidez do orçamento não passa duma fantasia, não há como escapar à conclusão de que má continuará a acção governativa, uma vez que mau é o documento basilar em que assenta. Claro que gostaríamos de poder acreditar que o próximo orçamento é na realidade um documento soberbo, e que todo o mal que dele se diz não passa de fabricações despudoradas da oposição.

Mas é da própria boca da ministra das finanças que ouvimos que uma coisita ou outra poderá não passar no Tribunal Constitucional, a menos que esta instância jurisdicional aceite as justas explicações elaboradas pelo governo. Em resumo, mesmo que não seja essa a opção de fundo de Coelho, Portas e Maria Luís, o facto é que não conseguem fazer contas senão à canelada com o Tribunal Constitucional.

E lá se agita de novo o fantasma da crise política, da antecipação de eleições, da perda de paciência dos credores. Enfim: se mal estamos, muito pior ficaremos. O argumento cheira-me a “bicho papão”. Para os ditos mercados, tanto faz quem esteja na condução da carroça: não preferirão especialmente Coelho a Seguro, como não tinham especial predilecção por Sócrates. Será Seguro mais contundente na reivindicação de condições mais favoráveis para a satisfação das nossas obrigações perante os credores? Será Seguro mais convincente na atracção de investimentos que revitalizem a economia e promovam emprego?

Dizemos, entre nós, que tudo foi mal negociado, que em juros e prazos nos espalhamos ao comprido, que a mesma troika foi benévola com a Irlanda, e incomparavelmente mais usurária com Portugal. Não sei, mas ainda ninguém explicou isto, pois não? Ressentidos, Sócrates e o seu ministro das finanças não cuidaram de fazer a melhor negociação, condescenderam, porque quanto mais depressa assinassem mais rapidamente se livravam do bicho morto. Coelho e Portas, inebriados pela proximidade do poder, impreparados além do que alguma vez admitirão, abraçaram de olhos fechados o memorando, assumindo que tudo aquilo que não sabiam lhes era dispensado de modo perfeito e pronto a aplicar.

Com o andar dos meses logo se viu que o programa de ajustamento mergulhava o País num estado crescente de estagnação. As oposições levantaram a voz, o governo não arriscou bater o pé. Seguimos em frente com as mesmas obrigações e cada vez com menos disponibilidade financeira para as satisfazer. Um banqueiro cheio de espírito disse em tom untuoso que aguentaríamos. Dizia a troika, mais recentemente, que acreditava plenamente na nossa capacidade de solver os créditos.

No vai e vem do paga e não paga, uma confortável maioria dos portugueses descobriu um dia que era masoquista, nas avisadas palavras do titular da presidência da república. Não é que a primeira figura de Estado vá aprender grande coisa, mas, já agora, o masoquismo é uma forma de perversão do afecto, sendo que o masoquista obtém gratificação emocional - para não dizer erótica - do sofrimento que inflige a si mesmo ou que aceita que lhe provoquem. Eu, por mim, Sr. Presidente, estou a sofrer e não tenho gozo nenhum, não sei se me entende.

Digam o que disserem, com uma economia em estado vegetativo não há forma virtuosa de obter receita e programar um orçamento. Os nossos políticos vivem de esperanças e de tiradas psicológicas; vivem por uma forma de fé, quando deveriam viver da procura e aplicação racional de investimento. Nem eles nem nós vamos a lado algum. Resta-lhes, porventura, uma solução tipo Alasca, possessão do império czarista perdida para os Estados Unidos à conta de dívidas que a Rússia não conseguia pagar. Que me desculpem os nossos irmãos do sul, talvez os alemães se contentem com o Algarve, pelo valor da nossa dívida e outro tanto para levantarmos a cabeça. Pode ser que eles e nós fiquemos bem. E pronto, não se fala mais nisso!

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