Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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O Casal Feliz

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2013-09-02 às 06h00

Escritor Escritor

Mário Viana

Vista do alto, a paisagem é árida, por causa das obras da auto-estrada que esventraram a serra do Marão, agora paradas. Na berma da estrada, aparece um telheiro com a indicação de “Albergaria Santa Hildegarda”. É aí. Entra-se num caminho de mato, abrigado por giestas, e logo se sente o cheiro silvestre. Um pouco adiante, uma cancela de ferro barra a passagem, marcando os limites da vasta propriedade. Transposta a cancela, numa volta do caminho descendente, o monte dá lugar a uns campos agrícolas em socalco, encimados por uns cortelhos, em cuja sombra se abrigam um burro sossegado e um assustadiço par de ovelhas. Aqui, o silêncio largo deixa ouvir o canto dos pássaros, o zumbido dos insectos, o rumor de água escondida, correndo, alegre e fria.

A descida continua por um carreiro tortuoso que, lá ao fundo, na sombra dos pinheiros, se alarga num caminho pedregoso. Do lado direito, na ponta duma soga suspensa dum ramo, uma sineta oscila de leve com a brisa. Uma tabuleta dá as boas-vindas a quem for em paz. O declive prossegue mais umas dezenas de metros. Por fim, ao som do rio a cair nas pedras, dá-se com a antiga casa do moleiro, onde vive o casal de eremitas:

Dele, ninguém sabe o nome original. Deixou-o, em 1986, na antiga Alemanha de Leste, como lá deixou a ditadura comunista, a família, a vida pequeno-burguesa de Berlim e a amargura de ter passado pela prisão, por ser objector de consciência. Veio porque quis começar de novo, renascer das próprias cinzas, como a Fénix. Por isso, talvez, lhe chamaram Feliz (Felix, em latim). Este é o nome por que o tratam, o nome que legalmente adoptou depois, o nome que lhe faz justiça, porque ele é… feliz. A longevidade e a faculdade de auto-regeneração da Fénix fazem dessa ave mitológica o símbolo da imortalidade e do renascimento espiritual. Feliz não é imortal, mas renasceu em espírito.

Mirjam, Miriam, Maria. É a sua inseparável companheira, a doce Eva que o acompanhou na busca do paraíso perdido, em várias paragens de Portugal: em 1986, no Cabo Espichel, com o oceano à vista; depois, nas faldas da Serra da Estrela, onde alguém os “baptizou” como Maria e Feliz; a seguir, na aldeia minhota de Vilar de Mouros; e, desde 1999, nos contrafortes da Serra do Marão, em Torgueda, na margem direita do rio Sordo, afluente do Corgo, que desagua no Douro.
O frio Muro de Berlim e a decrépita ditadura comunista ruíram em 1989, mas não a tempo de evitar que Maria passasse também pela tenebrosa prisão da polícia secreta leste-alemã, depois duma malograda tentativa de fuga para o lado ocidental. Também Maria quis renascer das cinzas desse passado, sem rancores nem amargura. Maria Fénix, Felix, Feliz…

Na solidão telúrica transmontana, movidos pelo lema beneditino “ora et labora” (“reza e trabalha”), dedicam-se ambos aos trabalhos domésticos e à agricultura biológica de subsistência. Maria também cultiva e recolhe plantas, vendendo em feiras e no mercado de Vila Real os seus produtos: chás, cremes, unguentos. Não têm electricidade, nem motores de qualquer espécie, eles mesmos canalizaram a água da serra e restauraram a casa.

Maria faz ainda as lides da casa, cuida dos animais domésticos, fabrica sabão, amassa e coze pão com o centeio moído pelo Feliz, num moinho de água situado a montante da casa. Feliz corta a lenha, para aquecer o frio inverno transmontano, faz trabalhos de serralharia e carpintaria, fabrica velas artesanais que cheiram a mel.

Feliz é um filósofo, de pensamento denso e cultura superior. De dia, enquanto trabalha, medita. Noite dentro, à luz dum candeeiro alimentado a energia solar, escreve textos que depois partilha com um punhado de leitores. É alto como um pinheiro, não larga o seu cajado, usa barbas longas e nos seus olhos azuis às vezes brilham inocências de gaiato. Quando se ri, solta gargalhadas cristalinas como a água do Sordo.

Maria pratica medicina natural, inspirada nos ensinamentos de Santa Hildegarda, abadessa beneditina alemã do séc. XII, que deu nome à rudimentar albergaria com o mesmo nome que o casal fundou - uns cómodos instalados perto da casa do moleiro, onde acolhem quem os procura, em busca da saúde física ou espiritual. Maria é baixa, tem cabelos de prata e olhos azuis, voz doce e sorriso fácil.

Ambos buscam orientação espiritual no silêncio. Vivem em pobreza voluntária e o segredo da sua felicidade vem do altruísmo que os faz livres. Abominam a massificação social que tritura o indivíduo, defendendo uma verdadeira condição individual livre. Materialismo, consumismo e “progresso” cego à custa do mundo natural são males de que o Homem tem de se curar, sublinham. A harmonia com a natureza passa pela alimentação saudável e pela medicina natural. A vida deste casal está marcada pela ética e pela capacidade da dádiva abnegada.

A imagem que melhor figura a sua presença neste mundo talvez seja aquela véspera de Natal em que ambos percorreram a aldeia, numa carroça puxada pelo burro, oferecendo velas de porta em porta, como símbolo duma luz espiritual que não se apaga.

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