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Braga, quinta-feira

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O conforto é das piores angústicas

Os bobos

Conta o Leitor

2021-07-19 às 06h00

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Texto de Maria Paula de Mendonça Araújo

Em uma sociedade cheia de problemas sociais, culturais e econômicos, as pessoas tinham milhões de preocupações para ocupar suas mentes, para distrair, para deixar tudo normal, de modo que a vida tivesse o peso que devia ter. Comigo as coisas não eram bem assim. Não me preocupava com as coisas quotidianas, nada me assustava, nem mesmo as contas para pagar no final do mês. Tudo era tranquilo, passivo e até mesmo entediante, era confortável.
Morei sempre na mesma rua, na Rua Agostinho Gabriel, frequentava sempre os mesmos lugares, não me arriscava em conhecer novas pessoas, restringia-me a falar com as quais meus pais já haviam me apresentado. Tinha um trabalho garantido na empresa do meu pai, no qual não precisava me esforçar muito para garantir um bom salário no final do mês. Tudo era agradável, impecável e tranquilo.

Mesmo sendo uma pessoa afortunada e até mesmo sortuda, sempre soube que um dia o castigo chegaria. O castigo sempre vem, vem sem avisar, vem para as pessoas que já o esperam, que já o temem, que sabem que o merecem, e comigo era exatamente assim. Parece que quão mais confortáveis somos, quão mais garantida é a nossa vida, mais estamos cientes do iminente revés.
Foi em um dia de inverno, um dia gelado e cinzento, aquele tipo de dia em que a hora de acordar é marcada pela vontade de buscar outro cobertor. O dia perfeito para a chegada dele, o castigo. Não. Não percebi de imediato o que estava acontecendo, mas me apercebi de sua presença. Sorrateiramente ele me chamou, ansioso para que finalmente nos encontrássemos. E foi quando abri a janela, minha linda janela, de jacarandá, que descobri o que o destino havia me reservado. Esperava de tudo, mas aquilo?! Aquilo era pior do que poderia imaginar!

Não percebi o que era com os meus olhos. Não era nada visível o suficiente para que pudesse simplesmente enxergar. Era um ruído. Não um ruído qualquer, mas era o pior dos ruídos, um ruído agudo e rasgante, um ruído que sabia que, no momento em que abri aquela janela, nunca mais me deixaria em paz. Todo aquele conforto que antes tinha, a calma, a tranquilidade, todos foram consumidos por aquele ruído angustiante. Tudo que antes era pacífico, passivo e, até mesmo entediante, passou a me irritar, a me chamar atenção, a me testar até que perdesse toda a minha serenidade.

Em pouco tempo, não me reconhecia mais. Aquele barulho insuportável estava me matando a cada dia. Antes mesmo que percebesse, aquilo já tinha tomado posse de mim e me consumido por inteiro, da cabeça aos pés.Tornava-me cada vez mais rabugento, insatisfeito, louco, insensível, irracional, pirado, maluco! Havia dias em que o ruído nem era tão presente, a vida se tornava calma e tranquila novamente. Mas em compensação, na maioria dos dias, e para que sentisse a dor em minha alma, ele era mais perturbador do que nunca. Esse ruído era capaz de dar vida às coisas que nunca foram importantes. Ele só se intensificava a cada dia, juntava-se com outros ruídos. Ruídos porque são incômodos, são atordoadores, são torturantes, são penetrantes, são profundos, são repetitivos, são infernais. Um deles foi o das milhares de ambulâncias que passavam na minha rua.

Como morava em uma rua movimentada, todos os dias pelo menos dez ambulâncias passavam em frente de minha casa. Antes, pouco me importava com o barulho desses veículos hospitalares. Mas quando o ruído começou a fazer parte da minha vida, a cada ambulância que passava sentia que meu coração entrava em colapso. Pensava durante horas naquelas pessoas, aquelas pessoas que estão passando por um sufoco, quase morrendo, que precisam de toda a ajuda possível para que possam sobreviver. Pensava em como aquelas quatro rodas conseguiam carregar o peso daquela responsabilidade, o peso da responsabilidade de uma vida. Como nunca percebi isso? Como nunca fui capaz de olhar ao redor e perceber que o mundo não gira à minha volta?

Depois de três meses me acostumei a ver, ou melhor, ouvir e sentir a vida daquela maneira. Talvez assim desse um devido valor para as milhões de coisas que aconteciam no mundo em que vivia, naquela rua, naquela cidade. Talvez a vida devesse incomodar, devesse perturbar e irritar. O que eu não sabia é que aquele não era o verdadeiro castigo.
A vida foi esperta o suficiente para me dar uma prova de tudo o que estava perdendo e logo depois tirar tudo isso de mim novamente. Agora, que estava acostumado, agora que entendia como se realmente deve viver, agora que estava me tornando uma pessoa melhor, era o momento perfeito para silenciar tudo novamente, para trazer o temível conforto de volta. Viver na errônea realidade, viver no desconcerto, viver sabendo que estou vivendo sem viver, esse era o meu castigo. Finalmente entendi que o que mais buscava na vida, o conforto, era das piores angústias que o ser humano pode sentir.

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