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O deita-gatos e a loiça de cotio

A responsabilidade de todos

O deita-gatos e a loiça de cotio

Voz aos Escritores

2021-06-11 às 06h00

Fernanda Santos Fernanda Santos

Ó rapaz que deita gatos
Deitas gatos só em pratos,
Só em tachos e tigelas,
Ou deitas gatos também
Nas almas e no que há nelas
Que as quebra em mal e em bem? […]
Só consertas, só pões gatos
No inteiro que se partiu.
O partido nasceu
Nem tu consertas nem eu.

Fernando Pessoa

A imagem do rapazinho deita-gatos é comovente. Ainda de tenra idade, mas já tinha profissão tal como tantas outras crianças na época, arrancadas tão precocemente à infância.
O deita-gatos da loiça de cotio não tinha estudos, mas sabia os mistérios escondidos em cada gateado que fazia. Por isso, poder-se-ia incluir nesse rol de pequenos/grandes trabalhadores.
Eram fortes os ofícios de alfaiate, albardeiro, ferrador, latoeiro, ferreiro, tamanqueiro, pedreiro, caldeireiro e, nas raparigas, a forneira, a mondadeira, a tecedeira e a criada de servir.
Perdura na minha memória e, sobretudo, no meu ouvido o escutar de histórias sobre moças que iam servir para casas abastadas nas grandes cidades, tal como nos diz a cantiga popular: Adeus ó terra/Adeus linda serra/ De neve a brilhar.[…] Eu no monte era moçoila/Tinha o nome de Papoila/Que no campo anda a lidar/Mas a Graça bem dizia/Como sou também Maria/ Tinha que ir pro pé do mar.

Para estas criadas de servir, a vida era mesmo madrasta. Não havia dias de descanso e o salário ia diretamente para os pais, sendo, ainda, descontado o preço dos tecidos para o vestuário. É este o retrato que nos fica da história de um país, onde tantas mulheres não puderam ser meninas. A ingenuidade e a liberdade de cada idade foram-lhes cruelmente ceifadas, e a vida parecia não ser para se viver, mas para se cumprir. Longe das suas raízes, denotavam não terem chão. Era a ausência total de referências que coabitava com os silêncios que armazenavam na alma. Eram elas que acendiam a primeira luz da manhã e apagavam a última da madrugada.
Talvez fosse esse o destino de uma mulher pobre: ser a última a deitar-se e não dormir com medo de não ser a primeira a despertar. Construíam as casas que não eram suas e embalavam os rebentos que não pariam. Cada mão sabia de cor o chão percorrido com o suor da escova. Cada sílaba era cantada a partir do seu corpo. Por isso, havia corpos que se abraçavam às casas pelo lado de dentro. Outros abraçavam-se pelo lado de fora, tal como podemos ler no excerto de Aida Araújo Duarte:
Na berma da estrada
a espera oferecida. […]
Engolia a dor
do salário incerto
vendia prazer.
“A mulher da vida”, uma perceção profunda da condição feminina que, infelizmente, não parece ter fim à vista no dizer de Cora Coralina: Mulher da Vida, /Minha irmã./De todos os tempos./De todos os povos./De todas as latitudes./ Ela vem do fundo imemorial das idades.[…].

Para não perder o fio à meada, recordo, com alguma nostalgia e muito respeito, o encanto das antigas profissões que lançavam os seus pregões pelas ruas, na ânsia de arranjarem algum trabalhinho. Tocavam a gaita e cantavam pregões como este “Deita gatos em bacias e alguidares, amola tisoiras e navalhas, conserta chapéus de sol…” conseguindo eternizar, através da sua arte, muita dessa herança.
Antigamente, aproveitava-se tudo, desde frascos, latas e garrafas, colavam-se as panelas e juntavam-se os cacos dos pratos que caíam e se partiam. Com este prolongar de vida, muitas peças de barro e faiança ainda se mantiveram “vivas” até aos dias de hoje. Talvez pudéssemos afirmar que eram as “Gretas” dos tempos atuais, pois andavam sempre com os “Rs” na boca e no corpo. Reaproveitavam as roupas que lhes iam dando, remendavam-nas, restauravam e reutilizavam o que a sociedade de consumo desenfreada em que hoje vivemos parece não valorizar.

Por isso, os deita-gatos e outras profissões afins deixarão de estar em vias de extinção, pois a pobreza do cotio está de volta, tal como a palavra amarela nos estômagos vazios. É a chamada violência social, que é o resultado de um conjunto de desigualdades
que tendem a agudizar-se cada vez mais por esse mundo fora.

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