Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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O homem da mesa do canto

Os bobos

Conta o Leitor

2018-07-25 às 06h00

Escritor Escritor

Autor: Palau

Ninguém sabia quem era, como se chamava, de onde vinha e para onde ia, nada... mas todos os que frequentavam aquele café de bairro, tinham uma certeza: todos os dias da semana (menos ao fim de semana), entre as 2 e as 4 da tarde, lá estaria ele, sentado na mesa do canto da esplanada coberta, a tomar o seu café, as suas pedras, o seu ‘whiskey’ com gelo, a ler os seus jornais e a fumar os seus cigarros, uns a seguir aos outros.
Ainda nos lembrávamos de como por ali tinha aparecido, se nas primeiras vezes era pouco mais que transparente, aquele seu ‘vício’ da mesa do canto, pouco a pouco chamou a nossa atenção: se, por um acaso, a mesa estivesse ocupada, era vê-lo caminhar pelo passeio em frente ao café, 20 metros para um lado, 20 metros para o outro, de cigarro na boca e jornais debaixo do braço, à espera que ela vagasse; mal tal acontecia, logo nós gritávamos, na nossa irreverência juvenil: “está livre...”, “depressa...”; “é agora...”; e, aquele homem, com um sorriso triste, lá vinha sentar-se na sua mesa do canto, sussurrando um obrigado na nossa direcção. Não demorou muito a resolução do seu ‘drama’, por sugestão de alguém, o Coelho lá pôs um, mal-amanhado, papel de ‘reservado’ na mesa, e todos os dias antes das 2, o papel aparecia, e aparecia aquele homem para usufruir da reverente excepção que tinha conquistado.

Pouco vocabulários lhe conhecia, além do “café, pedras, whiskey, obrigado...” a que conseguimos acrescentar o “boa tarde” a que nos respondia quando nós, em coro, o recepcionávamos, com tal cumprimento.
No fundo, o nosso interesse por aquele homem era mais ‘interesseiro’ e utilitário, do que qualquer outra coisa: tinha o bom hábito de deixar os jornais em cima da mesa, antes de se ir embora, o que, por nós, era logo aproveitado para o seu ‘confisco’ para a nossa actualização informativa.
Esses jornais tinham, no entanto, uma particularidade: vários títulos estavam sublinhados a vermelho o que, conscientemente no início, e por rotina a partir de certa altura, quase que nos obrigava à leitura privilegiada dos artigos a que esses títulos se referiam.

A singularidade daquele homem, rapidamente nos levou à tentação da especulação sobre quem seria e o que o levaria a frequentar aquele nosso retiro; e muitas teorias foram lançadas para o ar: desde controlar alguém da família, ou mulher adultera, que por ali circulasse; ‘mariconço’ de olho em algum daqueles jovens (nós) fogosos que diariamente ali se sentava; estava à espera de ‘Godot’; espião reformado; detective privado... etc., etc.,. Mas, pouco a pouco, pela força da rotina, outras conversas se tornaram mais pertinentes: ele ali estava todos os dias, todos os dias cumpria os seus rituais e todos os dias nos deixava os seus jornais, o que deixou de ser uma ‘benesse’ para passar a ser uma, quase, sua obrigação à luz dos nossos ‘direitos adquiridos’.

“Ó Coelho, onde estão os jornais?” alguém perguntou; “hoje o homem não veio” respondeu o Coelho de passagem. Talvez já o tivéssemos reparado, talvez aquela quebra de rotina já nos tivesse incomodado, mas aquele “...hoje não veio”, apanhou-nos algo desprevenidos, uma certa brisa fria circulou pelo grupo, e uns momentos de silêncio se instalaram; curiosamente, por uma razão qualquer, ninguém se aventurou a outros comentários e as conversas continuaram, porque tanto havia para conversar, naquela nossa forma ansiosa de abraçar o dia.

Mais um dia e repete-se a cena: “os jornais...”, “... não veio...”; dois dias seguidos..., nada nos ligava àquele homem, mas não conseguíamos evitar alguma desconfiança, afinal já há muito que ali parava, na mesa do canto da esplanada coberta, e nunca tinha falhado e agora logo dois dias seguidos... “meteu-nos os cornos” alvitrou alguém; “nah, a mim ninguém me mete os cornos”, gargalhou outrem em resposta; “deve ter arranjado um café com mocinhos mais bem compostos...”, rematou o preconceituoso; “deve estar doente, é um direito que lhe assiste, um dia destes volta”, decidiu o racional; “não têm nada mais interessante para discutir”, paragrafou o rosnador do costume... e lá ensaiamos a continuação do abraçar do dia, até que alguém chega com um jornal “logo hoje que há uma notícia que preciso de ler o gajo não aparece, já me desorganizou o orçamento diário...”. Não se passou muito tempo até que... “É pá, este não é o gajo?” indagou de jornal aberto; logo várias cabeças se inclinaram para o jornal e, lá estava a fotografia do homem da mesa do canto, na página da necrologia anunciado o seu falecimento: tinha o nome, com que ninguém se preocupou ou memorizou e pouco mais acrescentava, nem os habituais nomes de familiares o ‘anúncio’ incluía.

Nada nos ligava àquele homem, nem sabíamos quem era, mas não era aquela a notícia que esperávamos, nem a que queríamos; na nossa juventude ainda muito pouco estávamos habituados a lidar com a morte; não sei se por pena, não sei se por egoísta sentimento de falta ou, fosse porque fosse, era evidente que não nos apetecia nada estar a viver aquele momento; o silêncio instalou-se e, pouco a pouco, fomos desertando daquele lugar que, durante tanto tempo, tínhamos partilhado com aquele homem sentado numa mesa do canto e que nunca mais veríamos, que nunca mais aproveitaríamos a ‘benesse’ dos seus jornais, que nunca mais cumprimentaríamos, que nunca mais...

No dia seguinte lá estávamos, não o comentávamos, mas todos sabíamos e sentíamos o mesmo desconforto e, até, alguma irritação; não era dia de gargalhadas, nem de praguejos inúteis, estávamos ali porque tínhamos de estar, onde estaríamos senão ali? mas mantínhamos a estranha sensação de não o desejar; afinal a vida também podia deixar de o ser, sem nada podermos fazer, tal qual super heróis falhados, para o evitar.
Até que, um jovem casal enamorado, na tal mesa do canto se sentou, o Coelho não tinha posto o papel de reservado; a irritação acentuou-se, era quase profano ver alguém sentado naquela mesa, logo se propôs que convidássemos os jovens a sentarem-se noutra mesa, quisessem eles ou não, mas quando um voluntário para isso se preparava, o tal casal levantou-se e foi à sua vida. “Ó Coelho, traz mas é um café, umas pedras e um whiskey para aquela mesa e deixa lá ficar, assim ninguém lá se senta...” decidiu, inteligentemente, o pragmático, em singela homenagem ao Homem, o que todos corroboramos... se já não havia jornais para confisco, às 4 da tarde em ponto, logo vários nos ‘atiramos’ ao whiskey ali perdido o que teve o imediato condão de nos recuperar o sorriso, a vida continuava...

Não demorou muito a esquecermos o Homem da mesa do canto, muitos ali se sentaram, completamente desconhecedores da história daquela mesa, mas nesses muitos não estiveram, com toda a certeza, todos aqueles que com aquele Homem partilharam a rotina diária naquele café de bairro. E a vida continuou...
Três décadas se passaram, aventuras e desventuras vivi, como qualquer comum dos mortais; conheci mundos, gentes e culturas, fui feliz ou muito antes pelo contrário, tentei marcar alguns e por muitos fui marcado; e tive o Mundo a rolar na palma da mão mas, numa pirueta mal calculada, ele pelo meio dos dedos me fugiu e em cima de mim desabou, destruindo em momentos um ‘Castelo da Vida’ com tanto esmero construído mas, obviamente, de alicerces bem precários; portas escancaradas, rapidamente e com estrondo se fecharam; rostos, outrora sorridentes, ao meu passar se desviaram; chapadas sucessivas aqueciam-me a face enquanto me esfriavam a alma e a auto estima, e o futuro transformou-se na colheita das memórias do passado...

Três décadas se passaram, e ali estava eu, retornando ao ponto de partida, à porta daquele café de bairro, mirando aqueles jovens - um dos quais, em tempos, tinha sido eu, no mesmo dia à mesma hora - sem passado, gargalhando o presente e super heróis dominadores do futuro. E lá estava aquela mesa do canto na esplanada coberta e, como por magia, na minha invisibilidade vultuosa, para ela fui sugado; sentei-me, pedi um café, umas pedras, e um whiskey com gelo, abri o jornal, acendi um cigarro e por ali me fiquei... à espera.

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