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Braga, quinta-feira

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O meu rio pequenino

Indispensáveis são os bracarenses

O meu rio pequenino

Voz aos Escritores

2023-09-15 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Eu não nasci no rio, como Lazarillo de Tormes, mas quase, que a casa dos meus pais caía duma encosta, abraçava o vento e envelhecia ao sol. Lá em baixo, sereno na primavera e louco no inverno, o rio olhava-me nos olhos e dizia-me poemas que mais tarde soube serem de amor. Era o rio da minha aldeia, belo como o rio da Caeiro. A sua imagem, de tão nítida e absorvente, sempre comandou, e comanda, as minhas decisões festivas, que eu afasto de agosto, para me embebedar de tranquilidade. Por isso, raros são os lugares, as cidades, as pequenas vilas, aqueles que eu escolho antecipadamente e visito de olhos embevecidos. Rios, pontes e igrejas são referenciais psicológicos, a que acrescem os museus e o centro das cidades. Dou por mim muitas vezes a pensar na importância do «meu» rio em tudo o que me constitui, que engloba, naturalmente, a bela literatura e a inefável poesia. Falo do Cávado, ali pela Ponte do Bico, onde desagua o Homem, frágil no verão, pujante nos dias frios de inverno. Um dia, armado em grande nadador, mesmo na encruzilhada, vi-me a rodopiar e sem pé. Não fora um amigo atento, e era uma vez um José. O susto foi tão grande que ainda hoje tenho medo de águas revoltosas. Quanto ao resto, à música das ondas e das brisas, ao canto das rãs e das relas, à cor do verde e do azul em dias de sol aberto, o susto é de ordem muito diferente e leva-me no dorso da essência, que transfiro na palavra e na sentida frase. Aprendi, portanto, a vê-los e a senti-los. De Espanha, lembro-me de ver o Tejo sentado num morro santo, o da Ermida da Virgem do Rio, em Talavan, e de pensar no percurso sinuoso deste rio até à portuguesa foz. Em Paris, na ponte dos cadeados amorosos, sobre o Sena, interiorizei a ideia da dádiva e da representação do amor a partir de nomes misteriosos, em que sobressaiu um Ivan, que presumi não ser terrível. Em Berna, na Suíça, o rio Aar testemunhou a única vez em que me sentei num «trono» real. Respirava eu o ar do Aar, quando, aproveitando a boleia de quem entrava no parlamento suíço, o visitei. O parlamento suíço tem destas qualidades, e até permite que se sentem na cadeira no presidente. Lindo país, a Suíça, lindas cidades, Berna e Lucerna. E que dizer dos canais de Amsterdão em dias glaciais, das docas de Bruxelas pejadas de migrantes de ar tristonho, do Vístula que, em Cracóvia, nos transporta da cintilação do seu belíssimo centro para a escuridão de Auschwitz e Birkenau? O fluxo das águas é, em todos estes lugares, fisicamente semelhante, mas de uma diferença simbólica inexplicável. Como explicar, no fundo do nosso sentir, a coexistência dos hangares nazis patentes em Koblenz, na Alemanha, com a beleza absurda desta pequena cidade medieval, docemente pousada na interseção do Reno com o plácido Lahn? Indescritível, impossível de explicar. Talvez um dia o Amazonas mo possa explicar e junte a singeleza do Reconquista, ali por Buenos Aires, ao maior rio do Mundo, o meu ribeiro, o meu riacho, agora com peixinhos do tamanho de um dedo, mas que são vida e mataram a morte. Refiro-me ao pequeno rio da minha cidade, Braga, que me traz todos os dias uma brisa fresca que não me canso de respirar. Abençoado rio Este, não perdes nesta inaceitável comparação. Por muito que visite outras águas, outros rios, não é já com o Cávado que envelheço e prevejo subir às nuvens. É contigo, meu pequenino fio de água. Por favor, se um dia evaporares, peço-te encarecidamente que leves na tua nevralgia os odores, as manchas inexplicáveis e, se não for pedir muito, a estupidez dos homens.

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