O dente do javali
Ideias
2020-11-21 às 06h00
Ateoria económica tradicional refere que uma economia em situação de “normalidade” (sem recessões económicas profundas) se caraterizar em termos de comportamento das famílias quanto ao consumo de bens e serviços e quanto a poupança: (a) por, em ciclos expansionistas com o aumento da produção, emprego e rendimento as famílias tenderem a aumentar quer o consumo ao permitir melhorar o seu estilo de vida, quer a poupança devido ao “motivo de precaução”, ou seja, recursos para acautelar o futuro por súbitas e inesperadas quebras de rendimento, problemas de saúde, questões familiares, dificuldades financeiras na educação dos filhos e na velhice, etc.; (b) por, em ciclos recessivos com a baixa da produção, emprego e rendimento as famílias passarem a ter uma maior predisposição em reduzir a sua poupança visando manter o mais possível o seu estilo de vida anterior.
Mas, será que a narrativa acima se aplica a realidade atual de profunda crise sanitária e económica? A resposta é não, porque está-se perante uma situação “fora da normalidade” onde os comportamentos das famílias se modificam de forma significativa. Recorrendo ao caso português pode-se verificar que a taxa de poupança das famílias aumentou em tempo de pandemia, quer dizer, em contraciclo, num contexto de profunda crise sanitária e económica. Por sua vez, atente-se que historicamente tem sido quase uma constante as famílias portuguesas registarem uma das mais baixas taxas de poupança quando em comparação com o sucedido na União Europeia (UE-27) e na Zona Euro (UE-19). Um exemplo concreto, no ano de 2018, o Eurostat refere que a taxa de poupança das famílias portuguesas foi de apenas 7,1% do seu rendimento disponível em comparação com 12,5% da UE-19 e 11,7% da UE-27. O Luxemburgo com 21,9% e Alemanha com 19,1% foram os países europeus com maiores taxas de poupança das famílias. Observe-se, por fim, que antes da adesão de Portugal à moeda única no início dos anos 2000, as taxas de poupança das famílias portuguesas se situavam acima dos 20% do seu rendimento disponível!
Chegado a este ponto pode-se perguntar sobre o que tem sucedido no comportamento das famílias portuguesas em contexto de profunda crise sanitária, económica? Ora, ao contrário do preconizado pela teoria económica tradicional as famílias portuguesas, sobretudo, quanto aos agregados familiares que não sofreram reduções de rendimento em virtude de despedimento, “lay-off” ou redução de atividade, etc., passaram a aumentar as suas poupanças (e a reduzir o seu consumo presente) que atingiram mesmo valores máximos no atual contexto (o que ocorreu, aliás, de forma semelhante na também grave crise económica e financeira de 2007/2008), embora continuando a ser a poupança das famílias portuguesas inferior a da média da UE-27. Em concreto, segundo o INE no 2º trimestre de 2020, a taxa de poupança das famílias portuguesas subiu para 10,6% do seu rendimento disponível (7,5% no trimestre anterior) muito à custa da baixa de 3,7% do consumo presente das famílias. Entretanto, no mesmo período, a taxa de poupança das famílias europeias em termos da média da UE-27 foi bem mais elevada de 24,6%.
Por fim, eis duas questões-chave:
(1) Quais os motivos explicativos dessa maior poupança das famílias num contexto de profunda crise sanitária e económica?
(2) Quais os efeitos económicos esperados de uma maior poupança das famílias? Estaremos perante o fenómeno designado por “Paradoxo da Poupança” descrito por J. M. Keynes na sua obra-mestra “A Teoria do Emprego, do Juro e da Moeda, 1936?
(1) Para além do “motivo de precaução” já referenciado devido ao clima de grande incerteza em que vivemos, temos de considerar mais dois outros motivos importantes e específicos do momento presente de crise sanitária e económica, a saber: (a) a redução dos incentivos ao consumo presente (que passaram a se restringir aos bens essenciais) em resultado do confinamento e das restrições sanitárias que induziram em cortes a nível das refeições na restauração, das idas aos centros comerciais, das viagens, do entretenimento, do vestuário, etc. Na verdade, está-se aqui perante uma autêntica “poupança forçada ou involuntária”, dado que as famílias que queriam (e podiam) consumir mais ficaram impedidas de o fazer; (b) a alteração de estilo de vida das famílias com o refrear do consumo presente fruto de uma mais baixa atividade fora de casa. Aliás, será, assim, de esperar a manutenção de uma tendência mais ou menos duradoura para existir uma maior poupança das famílias no futuro.
(2) Sendo o consumo das famílias um dos principais motores da atividade económica acontece que se as famílias continuarem a poupar mais e, logo, a consumirem menos no presente, então, a desejada recuperação económica será mais ou menos lenta do que o esperado. Por sua vez, está-se na verdade perante o fenómeno designado por “Paradoxo da Poupança”, quer dizer, em contexto de profunda crise sanitária e económica uma maior poupança das famílias (uma atitude virtuosa a nível privado) se extensível a grande maioria das famílias implicaria em um menor consumo presente e, logo, numa recuperação económica mais ou menos lenta, não desejável. Ou, parafraseando o renomado economista J.M. Keynes: em situação de profunda crise económica “virtudes privadas, estupidez social”.
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