Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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O Perrico

Os bobos

Conta o Leitor

2022-07-24 às 06h00

Leitor Leitor

Texto de Luiz Saragoça

O Malhado, de um pêlo castanho brilhante e assedado, era o cão mais fino do contorno. Porte franzino, orelha arreguichada e rabo sempre alçado - faziam do cão o orgulho do seu dono.
O Tonhico Cancela passava o tempo livre na brincadeira com o seu fiel perrico. Tinha-o amestrado como um verdadeiro caçador: lançava um pau e ele ia buscá-lo, atirava-lhe uma bola e ele devolvia-la.
Era esperto o cachorro!
Não passavam um sem o outro. Nunca o largava, era como unha e carne. Certamente, ia ser um grande caçador, como a sua mãe o era. Até, já tinha apanhado um pássaro distraído!
Numa manhã, nubrinha cerrada, mal a porta do palheiro abriu, a burrecha saiu desencabrestada e, na sua estúpida brincadeira, deu um valente coice, sem querer, na pata esquerda do Malhado.
O cãozito cuincou, cheio de dores, arrastando-se para o mais longe que conseguiu.
O Tonhico, prestou-lhe todos os cuidados caninos, com todo o carinho e afeição. Até ao endireita o levou. O cachorro, oito dias depois, estava sarado e pronto para a brincadeira.
Estavam os Cancelas, pai e filho, sentados nas escaleiras, à espera do almoço domingueiro, quando o Manulete - almocreve de Santana, aldeia do outro lado da raia - montado na sua velha mula, parou, e vendo o caõzito que arreganhava os dentes na sua direcção, encantou-se com ele.
- De quem és lo perrico?
- É meu! – respondeu o pai do Tonhico, abeirando-se do perguntador.
- Hombre, dou-lhe duzentas pesetas pelo perrico.
O Tonhico, ouvindo a conversa, é que não estava pelos ajustes e retrucou logo para o espanhol:
- O perrico é meu e não está à venda!
O pai do garoto lança-lhe um olhar reprovador e, com o dedo em riste, ordena-lhe:
- Cala-te! Vai lá p’ra dentro ver se a tua mãe tem os ovos fritos!
- Oh pai, não vendas o meu malhado! - foram as últimas palavras suplicantes do garoto.
O certo é que, a decisão estava tomada e …, o negócio fez-se contra a sua vontade. Duzentas e cinquenta pesetas, cerca de quinhentos mil reis, mais coisa menos coisa, foi o preço final depois de todo o regateado.
O canino, também, não estava pelos ajustes e teve que ser apanhado à falsa fé. Mas, nestas coisas e noutras como estas, quem pode manda, e por duzentas e cinquenta pesetas estava o cão enfiado no alforge do espanhol, com olhar suplicante e preso que nem um malfazejo criminoso. O Malhado bem lutava pela sua liberdade, mas era uma luta inglória!
O espanhol, montado na sua mula, lá foi em direcção à raia, com o cãozito espreitando os caminhos e as rodeiras seguidas. Os seus latidos eram cada vez mais baixos até desaparecerem, por completo, na última curva do caminho. O coração do rapaz estava esmiga- lhado, mas o poder do dinheiro e a necessidade eram mais fortes. O rapaz ficou triste e de candeias às avessas com a vida.
- Não quero comer! Não me apetece! – Resmungava para a mãe.
No dia seguinte, continuava amuado.
Dois dias depois, pela tardica, estava o garoto sentado na escaleira a olhar para a raia quando, em grande correria, surge o seu companheiro de aventuras, com a língua de fora e morto de fadiga. Com um salto atira-se ao seu peito.
A alegria foi tanta que, cão e garoto, quase rebolavam pelo chão. O Malhado contorcia-se de alegria e não saía debaixo dos pés do rapaz.
- Tenho que te esconder!
- O espanhol vai apareça a reclamar-te. - Dizia, fazendo festas ao perrico.
- Ninguém pode saber que voltaste.
E, não é que apareceu!
Estava o rapaz nestas cogitações quando, olhando para os lados da raia, viu um vulto montado na cavalgadura. Supondo logo que fosse o espanhol, tratou de levar o perrico para porto seguro.
O moinho inverniço, a uma boa lapada da povoação, abandonado há longos anos, pareceu-lhe o esconderijo mais seguro. Carregou o companheiro ao colo e, em passo largo, dirigiu-se para o moinho. Abriu a porta, com um simples empurrão, entrou, conversou com o amigo, durante alguns instantes, e despediu-se fazendo-lhe um último carinho. O cão, adivinhando-lhe os pensamentos, olhou-o tristonho e ficou muito quieto e sossegado.
Fechou a porta, acaravelhando-a, e regressou a casa sacudido da silva.
Chegou a casa e, ainda, o espanhol estava às voltas com o seu pai, afirmando, aquele, que o perrico tinha fugido e o mais certo era ter regressado a casa.
- Tem de me restituir as pesetas que paguei! - afirmava o espanhol.
- Não, pois, vendi-te o perrico e nunca mais o vi - retrucava o pai do rapaz.
O pai, que não sabia de nada, vendo aproximar-se o seu rapaz, perguntou-lhe se tinha visto o cão.
- O mais certo foi ter-se perdido pelos caminhos da raia e algum lobo tê-lo abucanhado. – Respondeu o acrescentou o rapaz.
O espanhol esperou, esperou, … mas, nem sinal do Malhado!
As trindades, badaladas pelo autoritário sino, anunciavam o recolher no povo, quando a mãe chamou para o jantar:
- A ceia está na mesa! - gritou esta, à entrada da porta.
O espanhol, já coberto pelas sombras, não teve outro remédio senão regressar pelo mesmo caminho, por onde tinha vindo, mas agora pela escuridão da noite.
Num último apelo, ainda advertiu os Cancelas, se o perrico aparecesse que o avisassem.
Só no dia seguinte, o rapaz foi buscar o companheiro de aventuras e contou ao pai o sucedido…
O certo é que, o espanhol nunca mais apareceu por aqueles lados e a amizade, entre o cão o Tonhico, prolongou-se por muitos e bons anos.

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