Um batizado especial
Ideias
2021-03-06 às 06h00
Umberto Eco, em “Cinco Escritos Morais” (Ed. Relógio d’Água, 2016), referiu-se à comunicação social como sendo o “4º poder”, para além dos três poderes tradicionais dos Estados, a saber, o poder legislativo, executivo e o poder judicial. De resto, a “separação de poderes” (do Estado) foi uma das conquistas claramente solidificadas pelas revoluções liberais oitocentistas e uma das consagrações do constitucionalismo moderno. Eco, referindo-se, então, ao denominado “4º poder” (a comunicação social) dizia que “a função deste poder consiste em controlar os outros três poderes tradicionais”.
Essa ideia/perceção da comunicação social como “4º poder” não é nova; de resto, em parte, até se torna mesmo ultrapassada pela realidade vivida nos nossos dias! Em rigor, cada vez mais, a comunicação social é, numa certa perspetiva, o “primeiro poder”, aquele que – mais do que controlar os outros – condiciona todos os poderes do Estado. Atente-se na atividade política corrente: frequentemente, segue os “timings” da comunicação social; por vezes, torna-se um permanente exercício de chamada de atenção à comunicação social. A mensagem política, na realidade, se não ganha espaço na imprensa, não existe; o trabalho político, se não tem visibilidade mediática, é inconsequente. Há realmente uma espécie de “tirania da comunicação” (Ignacio Ramonet).
As coisas agravam-se, tornando-se (mais) perigosas para a saúde da Democracia, se os poderes em exercício porventura caírem na tentação de apenas governarem em função dos “inputs” comunicacionais. De resto, grande parte da conquista (democrática) do poder, acaba, muitas vezes, por resvalar em conquista do “poder comunicacional” Corremos o risco de termos um poder de fachada, de ilusão (primorosamente vendida aos cidadãos), sem ideias da parte de quem exerce esse poder, sem sentido estratégico e, sobretudo, ao correr das circunstâncias imediatas. Por exemplo, será o caso de uma governação porventura assente nos denominados “focus groups”, ou seja, grupos de apoio a quem exerce o poder, constituídos por “amostras” de cidadãos que, perante cada hipótese de decisão, dizem se gostam ou não. Pode ser mediaticamente popular, mas não reflete o que se exige de um decisor político, numa democracia representativa.
Há outros exemplos/riscos que reforçam aquela ideia de que a comunicação social já é, realmente, o “1º poder”. Com a crescente digitalização em curso e com a quantidade frenética e ilimitada de informação a circular – desde logo, nas denominadas “redes sociais” – a seleção do que nos interessa é, cada vez mais, programada por “algoritmos”, por “motores de busca”, na internet. Não temos controlo – nem existe transparência – nesse processo inevitável de seleção do que vamos lendo/ouvindo/vendo. A tendência do funcionamento dos algoritmos acaba por ser a de nos fornecer o tipo de informação (mensagem) que o nosso percurso de consumidor de informação procurou antecedentemente. Acabamos por saber aquilo que, porventura, mesmo irracionalmente, gostamos de saber – independentemente daquilo que possamos pensar! Acabamos por nos enquistar em nós próprios, numa visão muito subjetiva e apenas interagimos com outros (ou outra informação) que são como nós (outra informação de que gostamos e relativamente à qual aderimos fácil e instintivamente).
E, como já alguém escreveu (Byung-Chul Han) acabamos por “expulsar o outro” das nossas vidas (“A expulsão do Outro”, Ed. Relógio d’Água, 2018). O risco da informação não editada, veiculada diretamente pelos cidadãos nas redes sociais” é, precisamente, esse: a recusa de tudo o que não identificamos, imediata e facilmente, como “nosso” e, ainda, a fácil manipulação da informação que nos servem e que molda as nossas decisões políticas. Porque, na realidade, se não temos tempo, a nossa literacia (política ou outra qualquer) é, cada vez mais, adquirida através dos “inputs” rápidos da imprensa e das mensagens rececionadas via internet. Mas, em bom rigor, esse risco não se associa, apenas, à digitalização e à nossa vertente de “cidadãos (também) digitais”. A própria imprensa tradicional (rádio, tv e jornais) facilmente podem manipular as nossas decisões e perceções. Basta pensar em certas linhas editoriais (nem falo, sequer, em “fake news”, notícias não rigorosas ou mesmo enganadoras).
Basta um determinado “alinhamento” editorial ou uma certa omissão relativamente a factos relevantíssimos, mas incómodos para uma determinada fação do poder. Poder político ou económico (ou de outro tipo qualquer). E, na verdade, quando a questão que se coloca insistentemente no debate político e académico refere-se à supervisão do que é dito e enganadoramente redito nas “redes sociais”, torna-se também importante pensar em quem poderá supervisionar a transparência e as (sub) intenções de alinhamentos e opções editoriais na imprensa tradicional. Não serão “Polígrafos”, “Check Facts” ou outros simulacros de “testes de verdade” que poderão – ainda por cima, levados a cabo pelos próprios intervenientes e, por vezes, interessados – cumprir esse papel regulador.
As coisas, em termos de informação, não são fáceis, precisamente na era da “sociedade da informação”. E estes problemas, agora enunciados topicamente, foram apenas alguns dos que ontem, em debate realizado virtualmente pelo JUSGOV (da Escola de Direito da Universidade do Minho), sobressaíram.
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