Entre a vergonha e o medo
Escreve quem sabe
2024-12-30 às 06h00
Depois da entrega dos presentes de Natal, a casa da minha sogra parecia um cenário apocalítico. Não havia espaço para mais uma agulha por entre tapetes torcidos e cadeiras improvisadas, embrulhos e talões de troca amontoados. As crianças divertiram-se à grande, é certo, sorrindo e implorando por mais bonecada. Os adultos, por sua vez, continuavam a penicar, ora aqui ora acolá, procurando armazenar o máximo de calorias para o ano vindouro. O dia já passou, mas em cima da mesa ainda vejo bastantes rabanadas e sopa seca, com tonalidades e sabores diferentes. Umas são fritas, as outras assadas. Vislumbro também restos de mexidos e aletria, meio pão de ló trazido de Braga a escorrer creme fresco, para além de três potes redondos com mousse de chocolate caseira, doces de chila e até deliciosos sonhos confecionados pela tia Lurdes. Pressinto a síndrome pós festa, a melancolia do final de ano. Curiosamente, as minhas reflexões têm sempre início quando me coloco sobre a balança de minha casa. Se ontem a roupa velha, o anho e toda a doçaria me pareciam querer adornar o estômago, tão leves quanto uma pena de canário, hoje parecem-me um cinto de lastro, pronto para me lançar num mergulho bem profundo em alto mar.
Regressei a Braga. Na mala do carro trouxe algumas sobras bem acomodadas num grande tupperware. Esta minha sogra não perdoa! Aproveito para descansar e escrever este artigo. Desta vez a avó ficou com as crianças. O avô foi para terras longínquas e frias, bem suíças. Deve estar a bater dente, no pináculo de um qualquer amontoado de neve. Sinto o silêncio aspergindo nas paredes aqui de casa, como traços bem ramificados que o meu pai já escreveu. O silêncio é reconfortante, é como bebida sagrada dos deuses! Bem hajam as avós deste mundo que nos possibilitam a ausência de gritaria, durante e nos finais de ano. Aproveitei para visitar o centro da cidade. Nas ruas miro imensa gente em ziguezagues. Uns passeiam, tal como eu, enquanto outros entram e saem de lojas em modo de frenesim. Paro para olhar uma dessas lojas e constato um autêntico caos lá dentro. Desde produtos caídos, atropelos, filas e pessoas com semblante carregado, sinto o pânico dos funcionários a projetar-se em olhares saturados até à porta principal. Meu Deus, não vou entrar! Ao longe, vejo uma vitrine com promoções incríveis sobre os bombons. Desloco-me até lá, sorridente, mas fico pasmado. Como é possível a loja estar «à pinha» e ainda se comprar doçaria nesta altura do ano? Resisto, pois claro, recordando a minha velha amiga consciência que me alertou para as horas que teria de despender lá no ginásio. Do outro lado da rua, contrastando com aqueles pecados, vejo roupa de desporto em saldo. Lá dentro, enquanto uns trocam tamanhos desajustados com a sua realidade, outros procuram um milagre que se ajuste à sua almejada silhueta. Deixei-me também levar pelas luzes e mensagens da vitrine. Entrei. Lá está o admirável retalho a exercer em mim a sua força gravitacional, qual buraco negro sugando tudo lá para dentro.
Este ano foi excelente, tive saúde, trabalho e a minha família unida. No próximo ano desejo algo idêntico para todos. Gostava, no entanto, de ter a capacidade de começar uma nova rotina, praticar mais desporto como antigamente. Quem sabe, talvez colocar os abdominais no devido lugar. Sei que a tarefa não terá um início prometedor, dada a tentadora doçaria que ainda me pisca o olho lá em casa. Nos entretantos, tal como noutros anos, prometo a mim mesmo que depois da passagem de ano, tudo será diferente. Acredito que o melhor está para chegar. Até lá, vou continuar a passear por Braga, constatando a felicidade do retalho local, nomeadamente aquele que nos enche o bucho com saborosas calorias.
* com JMS
13 Junho 2025
06 Junho 2025
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