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O riso sombrio do caos - desde “Joker” a Valência e à eleição americana

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O riso sombrio do caos - desde “Joker” a Valência e à eleição americana

Ideias

2024-11-04 às 06h00

Carlos Pires Carlos Pires

Há uma certa ironia e até uma estranha harmonia ao associarmos três eventos aparentemente desconexos: o filme “Joker: Loucura a Dois”, ainda em exibição nos cinemas, a calamidade natural que assolou Valência em Espanha e as eleições americanas. Estes acontecimentos refletem de forma transversal a atual fragilidade, a insatisfação latente e a sensação de abandono, que reverberam tanto na política, quanto no ambiente e no cinema. Em cada um deles, encontramos um eco do que poderíamos chamar de “a nossa nova ordem mundial” — uma ordem marcada pela polarização, desastres e uma inquietude profunda.

“Joker: Loucura a Dois”, interpretado por Joaquin Phoenix e Lady Gaga, traz novamente às telas o personagem perturbador que desafia normas e questiona a estabilidade mental e moral da sociedade. Athur Fleck, personagem levado a atos extremos de violência como resposta ao desprezo social e às injustiças que sofreu, representa um tipo de loucura coletiva que, de certo modo, ecoa as instabilidades e as crises que vemos na vida real - um mundo caótico, onde a desigualdade e o ressentimento fermentam até à ebulição. Este filme não é apenas sobre um homem caótico; é sobre a sociedade e a sua reação ao caos. A cidade fictícia de Gotham pode ser vista como um espelho distorcido das nossas próprias cidades, onde a crescente desigualdade social e as falhas das instituições promovem a sensação de vulnerabilidade.

Assim, a estreia de “Joker: Loucura a Dois” no mesmo momento em que a Europa assiste a desastres naturais de larga escala, como as recentes cheias em Valência, Espanha, cria uma justaposição poderosa. As calamidades, sejam naturais ou induzidas pelo homem, revelam a fragilidade da ordem e do controlo. Valência viu-se cercada por águas violentas, provocando mortes, danos materiais e psicológicos significativos. A luta contra a natureza, que se intensifica com as mu- danças climáticas, mas também a revolta das populações contra o poder central, incluindo o Rei, pela falta da pronta ajuda de que tanto necessitam, lembram a luta individual contra o colapso emocional que o Joker tão bem representa.

A resposta das autoridades, como em muitas outras situações, revelou fragilidades. A insuficiência de meios, o desespero da população e a lentidão da resposta política geraram uma revolta compreensível. Afinal, assim como Arthur Fleck é uma vítima de um sistema que o falhou, muitos cidadãos espanhóis se viram numa posição de abandono, lutando contra uma força maior que não conseguem controlar.
Por fim, as eleições americanas, que mantêm o mundo suspenso de quatro em quatro anos, refletem a divisão interna de uma das maiores potências globais. Entre extremos, discursos polarizadores e acusações, o processo eleitoral nos EUA tornou-se quase um espetáculo de entretenimento. A nação, que já foi vista como um farol de estabilidade democrática, está agora dividida entre forças políticas que representam quase polos opostos de pensamento e valores.

Nestas eleições, podemos ver paralelos com a “Gotham” do “Joker”: uma cidade dividida, onde as diferenças de opinião se tornaram muros intransponíveis. A luta de classes e a desigualdade também estão na pauta americana, onde milhões de pessoas têm uma sensação de alienação e indignação. Para muitos americanos, assim como para Arthur Fleck, o sistema parece uma entidade distante e indiferente às suas necessidades reais. Amanhã saberemos o resultado, Trump ou Kamala? Hoje, apesar de ninguém parecer seguro de qual dos dois será o/a futuro/a Presidente da América, há algo de que não temos dúvidas – o divórcio maior ou menor entre instituições e cidadãos ditará a escolha individual de cada um dos votantes. E não nos esqueçamos que o rumo que os EUA tomarem nas suas políticas pode influenciar não só a sua própria estabilidade, mas também a dinâmica global, afetando relações com países da Europa e de outros continentes, palco de guerras em tempo atuais, impulsionando ou dificultando a cooperação.

Vivemos num mundo onde as fronteiras entre ficção e realidade parecem esbater-se, e onde o caos, quer ele seja natural, social ou político, surge como uma força constante. Os eventos em Valência mostram que os desastres climáticos não são apenas notícias passageiras, mas realidades com que teremos de aprender a lidar. As eleições americanas lembram-nos que a democracia está num estado de fragilidade, onde o diálogo se torna cada vez mais raro e o conflito, mais presente. E “Joker”, o filme, ecoa o descontentamento de milhões, uma expressão ficcional de uma realidade que é dolorosamente tangível.
Cada um destes elementos faz-nos questionar: onde está o limite entre a ficção e a realidade? Estaremos a assistir à criação de uma "Gotham global", onde o desespero e a divisão tornam-se o novo normal? A resposta pode ainda não ser clara, mas a necessidade de reflexão e ação é urgente. Enquanto olhamos para estes eventos, é imprescindível que façamos uma introspeção — tanto individual quanto coletiva — para decidir se vamos ser espectadores ou agentes de mudança.

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