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O Sonho de Simone

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O Sonho de Simone

Conta o Leitor

2019-08-06 às 06h00

Escritor Escritor

Ana maria Monteiro

Simone adormeceu tranquilamente sem imaginar o que o sono lhe traria. Sonhou que era noite de Natal e ela, quase criança no sonho, caminhava por uma rua deserta e mal iluminada, levando nos braços o seu gatinho branco malhado de preto, pequenino também ele, num estranho encontro entre quandos diferentes, juntos num tempo em que ele não existia ainda e ela estava ainda longe da mulher que mais tarde veio a ser.
Mas nos sonhos tudo é possível e raramente se estranham estas incongruências e por isso mesmo a situação parecia-lhe normalíssima. Até que o tareco se assustou.
Simone observou, espantada, o bichano inteiriçar-se todo, o lombo arqueado, o rabo alçado, o focinho assanhado. Nunca o tinha visto assim, seguiu a direção do olhar do gato e viu-a.

A velha mais parecia uma bruxa; muito velha e muito feia, toda encurvada, até no nariz e vestida de preto. Aproximou-se em silêncio, tentando acalmar o gato e reparou que a idosa, não se sabendo observada, chorava copiosamente e, apesar do seu aspeto terrífico, parecia inofensiva e desprotegida. Quando a mulher viu Simone e o gato, tentou disfarçar e dirigiu-lhe a palavra de forma rude:
— Que faz aqui?
— Boa noite, senhora. – Respondeu Simone, intimidada, — Ando a passear com meu gato. Meu nome é Simone. Muito prazer.
— És uma menina bonita e bem-educada. – E tirando qualquer coisa que trazia no meio daquelas saias todas, acrescentou: — Quer uma maçã? Mas logo fez desaparecer a mão levando a maçã. — Não, a si não posso dar a maçã.

E recomeçou a chorar.
— Não faz mal, não é importante, não precisa chorar. Eu também não me apetecia comer uma maçã agora.
— Não estou a chorar por isso, criança idiota, choro porque já não sirvo para nada e não posso te dar a maçã porque não estou de serviço.
Simone não estava a perceber nada e nem sabia que dizer.
— A senhora não tem família?
— Tive, há séculos.
— Há séculos?!
— Recordo mal, nunca penso nisso. Eu era uma menina com problemas, sabe? Era corcunda, mancava um pouco e tinha o nariz encurvado e com esta verruga horrível. Mamãe dizia que era um sinal sagrado, mas mamãe era mamãe, são todas iguais, sempre têm palavras doces para nos consolar. Mas fora de casa todas as crianças me evitavam e apontavam o dedo, chamavam-me nomes, chegaram até a me atirar pedras. Então fugi, para longe de tudo e todos, até que arranjei este trabalho e tornei-me poderosa, poderosa e imortal.

Simone olhava a velha sem entender nada, o gato acalmara e adormecera nos seus braços.
— E o que a senhora faz? – Perguntou delicadamente.
— Eu não faço, eu sou! Sou A Bruxa Má. Vivo desde há séculos, levada de boca em boca, matando, sempre sem resultado, meninas bonitas e inocentes em todos os continentes. Os pais e avós de todo o mundo contam minha história para as crianças, ensinam-lhes o que é o mal, sou o arquétipo do mal e da inveja.
— Não pode ser, a bruxa má não existe, a senhora não existe.
— Eu existo, sim. Trouxeste-me aqui, deste-me vida. Você é que não existe! Você é que está aqui mais eu, em seu sonho, enquanto seu corpo dorme tranquilo e sua mente repousa. Você é quem não existe!

Simone começa a chorar, desesperada por não compreender nada do que se passa.
— Mas porquê? Porquê? Por que eu iria sonhar com a senhora me dizendo coisas que não entendo?
— Ah! Isso já não sei, o sonho não é meu. Só posso lhe dizer o que você já sabe. Não sou eu quem manda aqui. – Volta a meter a mão debaixo da roupa, — Aceita uma maçã?
Arruma a maçã de novo, muito depressa. — Ah. Não posso dar-lhe a maçã, não estou de serviço. Bah! Odeio criança! – E, lançando um rápido olhar a Simone, acrescenta, quase simpática e em tom prometedor: — Mas sempre posso abrir uma exceção.

Simone não quer saber e pergunta o que lhe interessa: — Mas, o que é estar de serviço?
— Ora, estou de serviço quando alguém está contando a minha história p’ra um filho ou um neto, mas as pessoas estão a mudar e cada vez falam menos de mim. Passei de moda, é o que é, devo ter sido substituída por outra qualquer mais moderna. Dantes era uma correria, por vezes tinha de estar em um monte de sítios ao mesmo tempo, mas agora… passam horas, até dias, sem que ninguém fale de mim. – E recomeça a chorar.
— Não chore senhora bruxa, por favor. Prometo que quando for grande contarei sua história p’ra meus filhos e mais tarde para os netos também. Prometo.
— Cale a boca, garota, você já é grande, tem até uma menina, sua filhinha, esqueceu? Ela nunca dorme uma noite completa. Já lhe contou minha história, já?
A bruxa a interpelava com um ar zangado, quase feroz, Simone sentiu medo, o gato acordou e começou a debater-se, arranhando-a. Acordou sobressaltada, o gato dormia calmamente e o seu braço estava todo arranhado mas Simone não se recordava de nada.

Os dias passaram e estamos na época de Natal, Simone não sabe porquê mas sente o imenso desejo de oferecer à filha um livro muito especial, que procurou até encontrar, como se estivesse a cumprir uma promessa: “Branca de Neve e os Sete Anões”.
Mãe e filha vão adorar as horas que passarão juntas partilhando essa história, enquanto no céu, uma estrela algo disforme brilha com um pouco mais de intensidade.

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