Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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'O velho cliché de Nova Iorque', por Liliana Pinheiro Gonçalves

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2011-08-28 às 06h00

Escritor Escritor

Eram cinco da manhã, e Rose estava acordada, debruçada sobre um pequeno amontoado de folhas. Já tinha bebido cinco cafés e preparava-se para beber o sexto quando o telemóvel tocou. Era a sua melhor amiga Ana, que tal como Rose frequentava o curso de representação. Com um sorriso rejeitou a chamada e enviou uma curta mensagem: “Sim, estou a decorar o meu guião”. A resposta não tardou a chegar: “Dorme!”.

Rose entendeu que Ana tinha razão e com alguma relutância deitou-se.
No dia seguinte era dia de avaliação. Rose já tinha lido o seu guião pelo menos umas cem vezes. Até ela concordava que tinha já decorado todas as falas.
‘O velho cliché de Nova Iorque’ era a peça que Rose ia representar. Falava sobre o que para todos os nova-iorquinos é o velho cliché dessa mesma cidade - Um inglês visitar a América.
A noite passou serena e o dia amanheceu luzidio.

Os minutos naquele dia passaram a correr, (um pouco devido à noção que Rose tem das horas, que não é muito boa). Quando Rose se dera conta já estava debaixo das luzes de uns enormes holofotes em cima do palco.

Na primeira cena contracenava com Ana. Ajudavam-se mutuamente, e por isso nada corria mal.
A peça ia decorrendo e tudo corria bem, até que como num abrir e fechar de olhos estavam na última cena. E tudo pareceu complicar-se a partir desse momento.

Como sabem os actos, numa peça mudam consoante o cenário é alterado, e as cenas consoante a entrada ou saída de personagens num acto. A verdade é que a última cena da peça chegou, e Cátia - quem interpretava o papel de Katy, simplesmente não aparecia.
Rose interpretava o papel principal. A sua personagem era Kelly.

Era a rapariga do cliché de Nova Iorque. Inglesa, decidiu trabalhar e poupar dinheiro para ir visitar a América.
Rose esperava por algo que lhe dissesse o que se estava a passar. As suas mãos suavam e oscilantes tocavam ocasionalmente no cabelo devido à ansiedade, quando, inesperadamente, Ana apareceu.

O semblante de Ana estava vermelho e transpirava. Ana estava a incorporar o papel de Katy, e definitivamente estava tão à vontade com aquela situação como Rose.
Se Rose não conhecesse tão bem a sua melhor amiga, diria que talvez, como uma estudante que tem boas notas de curso que Ana era, teria lido algumas das falas de outros personagens, nem que fosse por conhecimento do contexto da peça. Mas na verdade, Ana ter decorado as suas falas já era muito bom.

Estavam ali, as duas, unidas pelo silêncio incómodo até que Ana, inevitavelmente, falou.
Eu sei que seria enfadonho contar aqui como tudo se passou e a verdade é que não o farei. Avancemos para uma fase mais interessante: o fim da peça.
A cortina fechou, e com ela, pensou Rose, fechavam-se também as portas do seu sucesso como actriz.

Rose e Ana, consideravam hipóteses de terem professores à sua espera com apreciações negativas, como: “Arruinaram a peça!” (Que absurdo! Estas raparigas tem imaginação, disso não se podem queixar!).
- Ana Rita Pereira Guedes; Rose Kelly Collin Stuart; comigo por favor.
Era a directora do conservatório que as chamava ao longe.

O vermelho pimentão que residia nas faces das duas colegas dera lugar a um branco cal.
- Estão a pensar mexer-se e é por isso que ainda não se mexeram?
As duas olharam para o lado. Um contínuo com uma esfregona na mão olhava para elas e mal reparou nas suas caras pareceu assustar-se.
- Ui, que caras, precisam de alguma coisa?
- Já alguma vez sentiu a sensação de que a sua vida vai mudar - Ana fez uma pausa - para pior?
O contínuo não se espantou com aquela pergunta.
- Já. No dia em que me disseram que não tinha jeito nenhum para actor, que a única coisa que fazia ao inscrever-me num conservatório, só podia ser para o lugar de contínuo.
Da boca das duas amigas saíram apenas uma espécie de grunhidos estranhos enquanto viam o continuo afastar-se a esfregar o chão, enquanto divagavam sobre pensamentos onde elas esfregavam o chão e perguntavam aos alunos se era a deitar lixo para o chão que pretendiam aparecer um dia no programa da Oprah. (Uau! Mais uma para caixa do absurdo)

- Sabiam que eu não tenho o dia todo?
Ao ouvir aquela voz Rose paralisou, por sua vez Ana dera um salto que até foi de encontro à Directora Anabela.
-Acompanhem-me por favor. - ordenou a Directora, que ao ver que as suas alunas não se mexiam, decidiu vir buscá-las.
Encaminhavam-se para o gabinete da directora.
As duas colegas não tiveram muitos encontros com a directora Anabela mas também não tiveram poucos. Mesmo assim não viam a directora como uma mulher fria ou severa, na verdade era divertida e leve, mas não deixava de ser exi- gente e de querer que dessem o seu melhor.

- Muito bem, eu vou directa ao assunto, e vou tentar não rodear isto muito - começou por dizer a Directora - como sabem o nosso conservatório estabelece um intercâmbio com uma das mais conceituadas escolas de Inglaterra. Essa mesma escola tem outra em Nova Iorque.
Ana e Rose não estavam a perceber onde a Directora Anabela queria chegar. Quereria ela dizer que por causa delas, essas escolas não querem ter mais nada a ver com o Conservatório? (Isto é Absurdo)

- O director das mesmas, o professor Charles Stone, esteve hoje a ver a peça - prosseguiu a Directora - Ele que durante este ano lectivo, aqui no conservatório, disfarçou-se de uma simples pessoa, passando despercebido a todos os alunos, isto, com o propósito de observar os alunos do último ano mais de perto.
- Pretendia encontrar duas raparigas, talentosas, e com o perfil para interpretar duas personagens de uma conceituada peça Americana, que será adaptada brevemente num filme, pelo director da escola com a qual estabelecemos intercâmbio.

Fez uma pausa como calculando o que diria de seguida.
- Essas duas raparigas, são vocês - adiantou a directora, mas como não querendo perder tempo prossegui rapidamente, antes sequer de alguma reacção da parte das suas alunas - Para isso durante um ano conviverão com o mundo de Hollywood, com novos colegas e novas realidades. Esses tempos servirão para se integrarem e habituarem-se.

- A peça é esta que acabaram de interpretar, ‘O Velho cliché de Nova Iorque’. Ana, tu irás para escola de Londres, isto porque irás interpretar o papel de Katy. Rose tu irás para a escola de Nova Ior-que, irás interpretar o papel de Kelly.

A Directora pareceu acabar, mas na verdade tinha uma última coisa a dizer:
- O Professor Charles, tem algo que gostava que eu vos dissesse e que passo a citar: “ Não deixem que ninguém vos diga o que deviam, devem ou não fazer, porque algures no mundo, há alguém a inscrever-se num conservatório, e uma pessoa lhe diz que a única coisa que ele pode estar ali a inscrever-se é para contínuo. Acreditem esse alguém não vai desistir.”

***

Final Feliz!
Eu sou Charles. O Director; o contínuo; o mentor destes dois prodígios.
O improviso! Devem-se estar a perguntar como afinal decorreu esse episódio.
A verdade é que eu já estava de olho naquelas duas. Fui eu que enredei tudo e combinei com a Cátia para que ela não entrasse em cena. Sabia que quando Ana se apercebesse que a sua melhor amiga estava em apuros, iria ajudar. E se bem se lembram, eu estive um ano a observar os alunos de fim de curso, tive tempo suficiente para perceber que Ana limitar-se-ia a preparar as suas falas antes da peça. (Agora digam lá se eu não sou o maior?)

O improviso faz um actor, sem ele não há actor, é essa a sua importância.
A Ana continua a mesma voadora. A Rose tornou-se ela própria, na vida real, o velho cliché de Nova Iorque. Além de serem muito boas no improviso, preferem não o fazer.
Moral da história?
Talvez estas: não devem nunca desistir, devem sim ir atrás dos seus sonhos, e também não sofram por antecipação.

PS: Já agora não desprezem os contínuos e não deitem lixo para o chão, porque eu conheço a Oprah, acreditem.

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