Sustentabilidade I
Ideias
2022-10-02 às 06h00
Oditame americano é um véu que envergamos consentidamente diante dos olhos, e assim não vemos o mundo senão de modo irregular ou desbotado. Véu que tamanho é, que nos sobra para os pés, como uma grilheta que nos trava o passo, e que da ponta contrária, franjeado, se nos enrola na língua, nos borra a fala, nos desmancha o raciocínio. Véu que uns procuram tão grosso, tão garrido, que do mundo mais não percebam que a ficção do estampado colado à retina. Véu de fina trama que outros levantam da banca oposta do bazar, para que ar tacanho não tomem para si, para que se cuidem gente arejada, de vistas largas, embora oscilem como recluso colado às grades.
Véu tão subtil e perfumado que a ilusão cria de um tapete de flores, tão convidativo e enganosamente deferente que, a plantas nuas, nos decalca os fofos de rubra passadeira de honra. E assim se figura estrela quem não vai além de bobo. Agarra-se a papel ínfimo aquele que por meticuloso adestramento internaliza que urja apanhar em voo a bucha que lhe jogam, seja ela recessa e bolorenta, pois antes essa que nenhuma. E ai de quem apouque a esmola! E ai de quem delire com buffet completo e prato cheio em quintal estranho! Pena que não vejamos, entretanto, que a migalha que nos zungam provinda é de rosca inteira que nos pilharam.
Falo de quem nos vem a casa, não do Outro, do Eslavo, que nunca veio, que nunca virá, que não lhe chega a perna para tanta Europa. Não tem o estafermo da estepe como pegar de estaca nas nossas bandas, mas com o turista indesejado nos azucrinam de há décadas a esta parte. Crónica e insanável detestação, aliás, posto que de Leste nada de fiável desembarque. Do Leste Extremo, entenda-se, que nós, se de espanhóis o dizemos, logo assumimos que seja por graça, embora nos fechem os rios sempre que isso lhes arranja.
O véu americano é mais do que um véu, é uma prótese, é um implante, que nos robotiza em movimento suavemente acelerado. O véu americano é mesmo uma pele, e nem sequer pele-segunda, mas pele-primeira, e oh se o brinco não se nota na gama dos dirigentes, nos arregimentados e serventuários do grande poder planetário! Por receios de fulano, afundamo-nos em subserviências a sicrano, posicionamo-nos com Abel, contra Caim, mas nunca de nós para connosco, como se interditos estejamos de trautear galhardo “Europa First”.
Ocorre-me que tiranos houve que por sua mão se envenenaram, gradual, pacientemente, porque a poeira acomodável de arsénico de hoje, de amanhã, de uma sucessão interminável de dias, os precavesse de dose fulminante emborcada de uma só vez. Estúpida verdade, que não suplanta o corpo a mixórdia: aguenta, enfim, até ao dia que rebenta. E, de veneno em veneno, me lembra exemplo contrário: de víbora dez vezes mortífera, não colhemos nós uma baba que, reduzida a um avo da letalidade, se revela remédio poderoso, capaz de refundir vida em músculo capital paralisado?
Que falta nos faz o suplemento vitamínico das pequenas verdades. Sobra-nos espírito para advogarmos que no Mal haja o Bem, e vice-versa, mas tal é o antolho que nunca nos desembaraçamos do carimbo com que manchamos o russo.
Não cabe aqui quanto haja para argumentar. Limito-me a salientar que nem nos dias de maior ingenuidade cairia na exaltação absoluta de uns, e no repúdio acabado de outros. Azucrina-me, isso sim, que sejamos levados para onde melhor fora que não quiséssemos ir, que abdiquemos de nos contruirmos a partir de nós próprios. Contabilizada a grandeza europeia, é um crime que nos sujeitemos a papel segundo.
Vénia por vénia, faço-a quem rasga véus.
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