Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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O Zé russo

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2017-08-07 às 06h00

Escritor Escritor

Lino Rei

Olha, aqui, sabes quem morreu? - Interrogou o progenitor.
- Diga lá, foi alguém da sua idade? - Enfastiou-se Alex com mais aquele comentário necrológico e a que, raramente, nem se dava ao trabalho de ler, no Jornal da terra, quando os familiares ainda  o mandavam colocar, por achá-los enfastiados.
- Foi o Zé russo! Coitado, sofreu tanto…
- Ah! Aquele que já estava quase de “malas- aviadas” e com cancro de estômago?
- “Embarcou” com sessenta e oito anos ! Até parece mentira!...
- Pois, qualquer dia há-de chegar a nossa vez - Filosofou Alex.
- Não te aflijas que tu também para lá vais, e não irás ficar cá para semente - ironizou-lhe o pai.
- Quando ela vier, cá estarei e não vou ser excepção…
- Nunca mais me esquece aquela nossa vida em França. Foi comigo, de assalto, nos anos sessenta, e até que lá chegássemos, comemos o pão que o diabo amassou. Já tinha visto quase tudo nos perigos do mar e em terra - ou pensava que sim - mas naquele nosso trajecto de fugir por montes e vales e meio abandonados pelos nossos passadores, foi a gota de água (…)
- Mas então vocês não tinham pago a viagem para emigrar?
- Sabes lá tu de meia missa! Claro que nós íamos fugidos e não tínhamos qualquer passaporte. Ouvíamos falar, por alguns conterrâneos, que, por lá, pagavam quase mais cinco vezes do que ganhávamos aqui. Isto, cá, era uma miséria dos diabos. O trabalho, quando aparecia, era às gotas e feito de pequenos biscates e, o mais das vezes, era de pequena duração. Tínhamos de pegar em tudo o que aparecia, pois ao mar só quando ele deixava e então virávamos para outro ofício, para vos sustentar (…)
- Então não havia a Previdência Social, nessa altura?
- Que é que pensas, rapaz? Isso são modernices de agora para uns tantos mandriões a quem o trabalho pela. Em terra, se havia trabalho, era recontar os míseros tostões para comer nesse dia. E isso quando o cliente nos pagava, ao fim de semana. Havia filhas da p--- que não nos largavam no trabalho e sempre a inspeccionar-nos. Então, um era tão somítico que para poupar no cimento queria até que puséssemos areia a mais !...
Tínhamos sorte se encontrássemos um mestre- -de-obras. Aí, sim, o trabalho estava assegurado por uns tempos. Íamos para aqui e para ali e, o mais das vezes, até para fora da terra. Mas isso era uma lotaria e só para uns poucos.
- Mas conte lá então como é que foi aquilo em França.
- Olha, depois de atravessarmos aquelas montanhas e fugirmos por aqui e por acolá, paramos num sítio qualquer e um dos engajadores entregou-nos a mais uns fulanos que, por sua vez, nos distribuíram por duas carrinhas de caixa aberta e tivemos que nos enfiar, escondidos, no meio de caixotes de fruta ou do feno do campo, e sei lá que mais, para não sermos interceptados por algum agente daqueles sítios.
Numa outra aldeia, tivemos que descer e andar a pé mais não sei quantos quilómetros, por caminhos sinuosos e sempre longe de povoações. Ao fim de três a quatro dias e arriscando a vida em cada momento, lá atravessamos a fronteira e paramos na periferia de uma vilória das redondezas. Subimos, de novo, para mais outras carrinhas, escondidos, até que fomos descarregados, como gado, em nenhures. Os motoristas despacharam-nos para outros tipos que nos deram umas direcções esquisitas, em francês, dizendo- -nos que, a partir dali, era connosco. Lá fomos e dirigimo-nos aos números das maisons que nos disseram. Aí, aguardavam-nos portugueses que já lá trabalhavam. Disseram-nos que teríamos de andar meio escondidos, e alojaram-nos nuns barracões que tinham nos quintais e que devíamos aguardar por carta de trabalho para a legalização temporária. Depois, logo se veria.
- E então como é que se desenrascaram, ao princípio, para comer, dormir e outras necessidades?
- Olha, com o pouco que levamos, uns adiantaram algum dinheiro, outros tentaram telefonar aos amigos conterrâneos. Mais cedo ou mais tarde, a malta lá foi sendo colocada aqui e ali. Os que não puderam pagar, ficaram a dever, até arranjarem trabalho.
- Ouça aí, como é que aprenderam o francês?
- Isso é outra história que só contada. Ao princípio, a gente percebia lá o que aquela gente ladrava. Era uma coisa assim para o esquisito. Palavras terminadas em, vás, bês e ires. Devaga- rinho, lá fomos arranhando os bonjour’s, os du pain e du vin, as bière, os ç’avá, até que conversando e treinando com os nossos fomos aprendendo mais umas palavrinhas, sobretudo relacionadas com o trabalho. Ao fim de um certo tempo, a malta começou a fingir ao franciú. O que não percebíamos, era tudo por gestos.
A coisa foi de heróis, digo-te uma coisa. Não tínhamos quaisquer estudos mas a necessidade obrigava a aprendermos a linguagem daqueles tipos.  Fazes lá tu uma pequena ideia do que havíamos ainda  de passar!...
- Mas, então, e o tal de Zé russo?
- Ah! O falecido? Sempre nos demos bem e foi também um moiro de trabalho. Como éramos da terra, ao princípio, fomos parar ao mesmo empreiteiro, um gajo algarvio, mau como as cobras, um filho da p--- que pegava por dá cá aquela palha quando as coisas não eram como ele queria.
- É, costuma ser. Lá em casa, a mulher é que malha neles e depois vingam-se nos patrícios.
- Ouve! Vou-te contar uma que dá para rir e que nos aconteceu aos dois, tudo por causa de uma chaminé, numa obra de um português, já meio afrancesado e bem instalado na vile de Écully, perto de Lyon. O certo é que o tal cliente, também algarvio, queria colocar na vivenda nova uma chaminé daquelas que existem lá para o sul, com aqueles berloques em arabesco mas que dava uma trabalheira do caneco.
- E  sempre a acabaram?
- Ah! Ah! Ah! Se a acabamos !…
- Conte lá.
- Estávamos perto do Natal e eu mais o Zé russo já tínhamos combinado a viagem para Portugal, dali a dois dias, pois aquele frete da tal chaminé tinha sido um acrescendo e à última da hora e ia-nos fazer adiar a viagem .
Em cima da hora, o raio do empreiteiro, amigo do patrício, deu-nos um desenho, num papel, e disse-nos para a copiarmos nos conformes. E que tínhamos de a acabar dali a dois dias. Então o Zé russo, meio f----o, por ver que a coisa estava preta para acabar a tal obra-prima, e a tempo, cochichou comigo:
- Compadre, isto vai ser uma porra! Eu sei lá botar cal hidráulica nestes tijolos e muito menos copiar esta merda, em gesso-grês, e de modo que a coisa não pegue fogo, logo na primeira acendalha do fogão !? Sabes o que a gente vai fazer? Vamos fazer a la francaise!? E assim foi.
- Como assim?
Antes do prazo marcado, aquela algarvariada pareceu que se candidatava a qualquer concurso internacional da especialidade. O russo lá telefonou ao empreiteiro, dizendo-lhe que a “Mona Lisa” já estava pronta. Veio este, acompanhado do dono, muito admirados com a beleza estética da tal chaminé e que, à distância da altura, lhes pareceu mesmo uma cópia fiel do casario algarvio. Tanto que até nos deram mais uns francos pela antecipação. A malta, no dia seguinte, apressou-se logo a  ir passar as vacances à terra.
- E depois, o que é que aconteceu?
- Bem, aí é que foi a gaita. A malta quando regressou ao trabalho foi logo chamada ao escritório do chefe que nos pregou cá um sermão dos diabos.
- Ouçam lá, oh estupores do norte - vociferou--nos o patrão - Que raio é que vós fizestes à chaminé do meu amigo?
- Então, patrão? Ela não ficou toda nos trinques?
- Meus safadões! O homem, passada uma semana, veio ter comigo, muito aflito, que aquilo entrava-lhe em casa uma fumaceira do car---ho e que só podia ser da chaminé nova. Que merda é que vós lhe colastes, fangueiros?
- Nós, patrão ? Então a “sineira” não ficou toda bonita cá de fora e parecidinha como no papel?
- Lá parecida ficou, eu quero é saber que raio de material é que vós lá colastes, que aquilo pegou fogo e foi preciso os pompièrs acudirem, se não ainda ardia a casa toda!?
- Ó mestre, se a coisa ardeu é porque o teu patrício empanturrou a lareira de toros a mais! …
Oh seus cabrestos, eu vou é despedir-vos a ambos, e de uma vez só, se não me remedieis a coisa como deve ser.
E lá voltamos, outra vez, a reconstruir a chaminé, agora com os “condimentos” todos do material apropriado, com engenheiro de obras  e com todo o tempo necessário.
- Mas, afinal, qual foi a vossa partida?
- Olha, a malta é que já estava farta daquele filha da p--- e para nos vingarmos, em vez do material apropriado, acabamos por utilizar um molde de madeira que pintado a rigor, cá de baixo, parecia mesmo a cópia fiel da chaminé. Só que nunca contávamos que a coisa aquecesse tanto que acabou, com o excesso de calor, por ficar tudo carbonizado …
- Mas e então o desfecho?
- Olha, aguentamos pouco tempo com aquele gajo e mudámo-nos para outra empresa.
Mas não fiques com a impressão de que não percebíamos da nossa arte. Nós até é que ensinávamos muitos dos estagiários franciús em muita coisa. Não precisávamos de papel nenhum para saber da nossa arte. Quando a coisa era a sério, o nosso trabalho e a perfeição eram sempre gabados por muitos dos empreiteiros franceses. Agora, alguns dos nossos patrícios bem precisavam de umas boas partidas destas. Costuma dizer-se “nunca peças a quem pediu…”.

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