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“Obrar”

Assim vai a política em Portugal

“Obrar”

Ideias

2019-10-21 às 06h00

Filipe Fontes Filipe Fontes

(É convicção) foi tempo em que a qualidade e o resultado da acção de “um político municipal” / autarca se media (quase) exclusivamente pela sua “obra”, obra aqui entendida como a realidade física edificada, de alguma forma e simplificadamente, de betuminoso e relva, de pedra e cal. Ou seja, em relevo e posição central, por si só, o carácter pétreo da acção governativa, quase como numa convicção generalizada de que o que unicamente importa é a transformação do território em função das nossas necessidades e desejos (porque este mesmo território não nasce na nossa medida e exigência certas) e tudo o resto surja por “artes mágicas”, quase como se sempre lá estivesse e assim continuará…

É também convicção de que, durante muito tempo, o verbo “obrar” foi o exclusivo de quem se candidata e é avaliado, de quem avalia e usufrui, numa relação de dependência e exigência que, se em períodos de carência e falta poderá significar impulso positivo para a acção e superação, em fenómenos longos de dependência (como é natural acontecer na relação democrática entre eleitos e eleitores), não raras vezes (ou melhor, como regra) transforma-se em dependência e deturpação: “corre-se atrás” da (suposta) necessidade para demonstrar capacidade e resultados; “fabrica-se” necessidade para exigir acção e resultados.
Hoje, julga-se que a realidade regista mudança. Mudança na necessidade e na exigência: na necessidade porque o território apresenta-se cada vez mais infraestruturado e preparado, muitas vezes, porventura exageradamente infraestruturado; na exigência porque, cada vez mais, se percebe que os serviços, as acções imateriais, a formação, a cultura, a acção social, a educação, entre tantos outros, são fruto de políticas e acções de construção e transformação humanas e não simples “arte mágica” de fazer aparecer e funcionar.

Apesar de tudo, e de exemplos ainda persistirem, na actualidade, será consensual que a realidade mudou… ou tem vindo a mudar. E mesmo quando se regista “obra”, já não nos limitamos tão só a aplaudir ou criticar o resultado físico da mesma. Geramos e acrescentamos apreciação crítica sobre o seu impacto na vida e no quotidiano das pessoas, no seu efectivo benefício ou erro… seja no campo da mobilidade, cultura, educação e outros.
Todavia, e talvez por isso, é emergente a constatação da falta de capacidade, ou a dificuldade, em operacionalizar a obra física realizada e disponibilizá-la à população em pleno funcionamento e coerência com o investimento delineado.

A “obra” é parte de uma realidade maior a que se chamará “investimento” e que implica, sucintamente, a leitura da realidade, a fixação de objectivos, a sua programação e a construção de um conjunto de medidas complementares (mas essenciais) para a operacionalização e rentabilização da obra feita. Porque, na verdade, sem estas, a obra fica incompleta e sempre aquém da meta. Não basta construir o edifício para um museu se não for pensado o que lá se vai expor e como expor, se não se reflectir sobre a sua manutenção e funcionamento (encargos, trabalhadores, horários), se não se divulgar e comunicar (para dar a conhecer e convidar), se não se exercer pedagogia e preparar a população para aceitar e envolver-se com esse museu… Se assim não for, o edifício ficará concluído, estará de “portas abertas”, marcará a paisagem urbana mas não deixará apenas de ser “pedra sobre pedra”, sem pessoas e sem sentido.

Noutra perspectiva, não basta construir ciclovias. Porque ciclovias só fazem sentido quando existem pessoas para nelas circularem, quando existem pessoas “que andam de bicicleta” e que precisam de canais específicos para maior conforto e segurança. Porque, se assim não for, ciclovias serão rios sem água…
Chegados aqui, e não se negando a importância das “obras”, estas são dependentes e tributárias de tantas outras acções, porventura tão menos visíveis e impactantes mas que, na verdade, são aquelas que operacionalizam e criam condições de rentabilização da mesma “obra”. Uns chamam a estas medidas ou acções imateriais. Outros denominam “parte intangível do processo”. Outros nomes existirão… mas esta não é a questão relevante.
“Obrar” só faz sentido e produz resultado se for complementado e completado o processo de investimento, ou seja, concretizadas todas as acções identificadas para atingir determinado resultado com aquela obra (sabemos que edificar é a parte porventura mais fácil e menos complexa, ainda que mais onerosa…). E é esta globalidade de acções, que sobrepõe a palavra investimento à “obra”, que confere holística e sentido a todo o processo. E se traduz em benefício efectivo da comunidade.

Há “obras” que se revelaram desnecessárias. Outras há que se adivinharam sem sentido antes mesmo do seu início. Mas, há “obras” que tinham / têm sentido e razão de ser e que falharam porque se transformaram em “ilhas”, apenas donas de si mesmo, sem tudo o resto necessário para justificar, funcionar, rentabilizar e optimizar na lógica comunitária que é a vida urbana. Não adianta construir e “obrar” para perenizar no território. “Obrar” como parte do “investir”, e transformar positivamente a vidas das pessoas e da comunidade, deve ser o foco e o sentido. Talvez seja este o segredo do verdadeiro património…

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