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Onde estão os nossos heróis?

A Cruz (qual calvário) das Convertidas

Ideias

2018-04-02 às 06h00

Felisbela Lopes Felisbela Lopes

Por estes dias, o nome de Arnaud Beltrame talvez se vá esbatendo na memória coletiva partilhada em intensidade variável por cada um de nós. Mas o exemplo deste tenente-coronel, morto por um extremista islâmico após substituir uma refém num ataque terrorista ocorrido a 23 de março em Trèbes, abre-nos uma reflexão profunda acerca da bondade humana. Beltrame nunca deixou ser um militar numa cena de terror, mas ali, perante a subjetividade de uma escolha individual, este homem optou por trocar a sua morte pela vida de uma mulher que não conhecia. E isso abala o egoísmo de uma contemporaneidade afogada em efemeridades.

Esta semana a revista francesa LObs surgia nas bancas com uma pergunta na capa: O que é um herói?. No interior, vários pensadores ensaiavam respostas, bem ancoradas da atualidade. O historiador Jean-Noel Jeanneney lembrava que um herói afirma quase sempre a sua glória num instante decisivo, na imediaticidade de uma bravura absoluta, incarnando a solidão intensa de uma escolha pessoal. Beltrame fez tudo isso. Não pela procura de poder, como bem sublinha o neuro-psiquiatra Boris Cyrulnik. O seu sacrifício foi puramente desinteressado. E essa coragem e essa grandeza remetem-nos para o domínio do indizível, se quisermos falar do essencial do que foi capaz de fazer.

O sociólogo Michel Wieviorka defende que o tenente-coronel pode agora ser um símbolo da resistência ao terrorismo: A luta contra o terrorismo tem o seu herói que se sacrificou pela nação. Não seria tão audaz no optimista vaticínio. Neste tempo líquido, pendurado em contas de redes sociais muitas vezes de proveniência algo duvidosa, todos nós poderemos ser o oito e o oitenta e tudo se ultrapassa à velocidade em que se publicam duas ou três frases no universo digital. Não é fácil ser um homem fora do comum nesta web 2.0 ou 3.0. Arnaud Beltrame é um herói que nos surge em contraciclo. Um herói de tempos longínquos, quiçá míticos. Aí está alguém a representar-se a si próprio e a trazer atrás de si uma nação nos dias que se seguiram a mais um terrífico ataque islâmico.

Pascal Ory, professor emérito na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne, concorda ser difícil neste moderno mundo ocidental encontrar alguém como Beltrame. Mas é possível. Ory recorda os bombeiros que, em setembro de 2001, tentaram salvar vidas que se apagavam com o desmoronamento das torres gémeas. Em cada ataque terrorista, outras pessoas sobressaíram como que a testemunhar que, no meio de gestos aterradores de certos homens, há quem supere todos os limites da bondade humana. E é com essa gente que se deve tecer a história dos nossos dias.

O Presidente francês Emmanuel Macron, que se mostrou algo apagado na reação ao ataque de Trèbes, esteve bem na homenagem ao tenente-coronel num dia carregado de nuvens e pesado no sentimento de impotência com que cada um seguiu as cerimónias fúnebres com honras de Estado. Nas televisões, retivemos as mãos de Macron imobilizadas, por uns generosos segundos, sobre a urna que se homenageava ali. O nome de Arnaud Beltrame tornou-se o nome do heroísmo francês, proclamou o Presidente francês no pátio do Palácio dos Invalides. E ficou a promessa: a sua memória perdurará, o seu exemplo permanecerá entre nós. Vou cuidar disso, promete-vos.

Na verdade, precisamos muito de exemplos assim. Que nos desprendam da mesquinhez de homens e mulheres sem qualidades que se cruzam permanentemente connosco. No nosso meio laboral, nos espaços informais por onde passamos, nas pessoas que temos a pouca sorte de conhecer. Beltrame desata-nos de relações calculistas e ziguezagueantes, retira-nos de lugares inseguros e cheios de alçapões e lembra-nos que o essencial das nossas vidas pode agarrar-se através de gestos despojados de qualquer raciocínio mais interesseiro. Num texto enviado à revista Vie, a sua mulher Marielle escreveu o seguinte: não podemos entender o seu sacrifício, se o desligarmos da sua fé pessoal. Foi um gesto de um militar e o gesto de um cristão. Para ele, ambas as coisas estavam ligadas. Tem razão, Marielle! Aquilo que mostramos aos outros nos lugares por onde passamos diz sempre muito daquilo que somos. E nem sempre deixamos nesses espaços bons exemplos. Valem-nos certos homens e mulheres. Que nos abrem caminhos luminosos para acreditar num futuro mais auspicioso.

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