Um batizado especial
Ideias
2023-03-04 às 06h00
Em 1992, Francis Fukuyama publicou o seu livro “O Fim da História e o Último Homem”, na sequência de um artigo que, em 1989, tinha escrito e publicado na Revista The National Interest (neste caso, com o título “O Fim da História?”). Naquele ensaio, assim como no referido artigo – ambos escritos após a queda do muro de Berlim - Fukuyama defende, no essencial e numa certa perspetiva, que a generalização da democracia liberal poderia indiciar que se teria atingido o último nível da evolução sociocultural da Humanidade e que, por conseguinte, não haveria mais lugar, teórica e historicamente, à subsistência de regimes totalitários e repressores da liberdade individual. Ter-se-ia, no fundo, encontrado o derradeiro modelo de regime político: a democracia de base liberal. Os trinta anos seguintes demonstraram-nos que, na realidade concreta da vida dos países, dos regimes e das práticas de poder, a hipótese de Fukuyama não era realista. A guerra perpetrada pela Federação Russa de Putin contra a Ucrânia (por exemplo) fez-nos repensar muito do otimismo com que tacitamente pressupúnhamos que vivíamos já uma era de “impossibilidade da guerra” de conquista territorial, de Estados contra Estados e promovida por regimes totalitários. Afinal, existem regimes que não são democracias liberais (e que não são casos relativamente marginais, como será a Coreia do Norte), nem para lá se direcionam (ainda que lentamente)! E tais regimes podem prosseguir, contra a ordem internacional estabelecida, uma agenda que não olha a meios para atingir os seus fins de poder e de promoção de interesse económicos ou, simplesmente, de crenças (no caso, relativamente pré-Iluministas). Não quero ser simplista, nem néscio, porém, continuo a pensar que um regime que se centre na liberdade individual, que aceite e implemente materialmente o “Estado de Direito” e a democracia, é o mais adequado à prossecução da melhor vida possível dos cidadãos. E será, até ver, o mais justo e eticamente defensável. O respeito pelos direitos das minorias é condição imprescindível de civilização, de liberdade individual. Por isso, do mesmo modo que acho que não tenho que ser imparcial na análise da conduta russa-putinista (opto pelo meu modelo político ocidental), também devo exigir que comigo possam coexistir outras posições e perspetivas, outras sensibilidades e crenças. E que quem as adota possa livremente defendê-las. Liberdade de pensa- mento, de opinião e de expressão – coisa que não existem nos modelos de regime que tais cidadãos apoiam ou, pelo menos, não recusam sem tibiezas! É verdade que me irritam, acho eu que sobretudo por interesse estratégico e desonestidade intelectual, posições ambíguas como aquelas que vi serem defendidas, numa primeira fase, pelo Presidente Lula da Silva: “o que se quer é acabar com a guerra”, colocando, no fundo, em pé de igualdade quer a Rússia, quer a Ucrânia. “Pare-se a guerra” (como está, com as tropas russas em território ucraniano, destruindo-o) e depois negoceie-se a paz! Posições que se “esquecem” (voluntariamente) que não há propriamente um conflito, mas sim uma agressão. E, nessas situações, a agressão parará quando o agressor…quiser parar a agressão! Aí, sim, poder-se-á, em termos equilibrados, negociar….
Mas, voltemos ao “nosso” (meu, pelo menos) modelo de regime. O democrático. Voltemos à liberdade de expressão: vi, com interesse, mas também com alguma preocupação, um trabalho de divulgação, um trabalho jornalístico, sobre os modos como têm votado os Parlamentares europeus no que diz respeito a iniciativas (nomeadamente, resoluções e outras tomadas de posição daquela Instituição) sobre a Rússia. E, em especial, após a guerra. O trabalho foi inicialmente publicado pela Novaya Gazeta Europe, tendo sido, contudo, republicado e difundido pelo EU.Observer. Ora, a Novaya Gazeta Europa é um jornal on-line russo que tenta escapar à censura de Putin. É um órgão de resistência, contra a guerra e contra o regime imposto e gerido pelo Kremlin. O trabalho em causa – contudo, com dados factuais e bastante interessante para se compreender o perfil dos eurodeputados – intitula-se “Os dados das votações revelam os amigos da Rússia no Parlamento Europeu”. E, de facto, assim é. Diz-nos quem vota sistematicamente contra resoluções “antipáticas” a Putin, quem se abstém estrategicamente, identificando os partidos nacionais a que pertencem esses eurodeputados. Por exemplo, lá aparecem dois eurodeputados portugueses do Partido Comunista. Alguns, também, do Syriza grego (lembram-se?). Os de algumas forças alemãs de extrema direita e os afetos a Marine Le Pen. E muitos outros….
Porém, o facto de tal estudo (uma análise de dados das votações) ter sido divulgado, como o foi pelo EU.Observer – por exemplo, com os nomes dos respetivos deputados qualificados como “amigos da Rússia” – fez-me sentir que houve uma tentativa de estigmatizar, para além de informar. Importa, em democracia, ter memória (que “a culpa não morra solteira”); mas também importa não dar, ainda que sem comparação com o que se passa, por exemplo, na Rússia de Putin, a sugestão de que, de algum modo, já se poderá estar a tentar limitar a expressão de certas ideias (mesmo que, aparentemente, antidemocráticas). Mesmo à boleia da informação…. Digo eu, sem ter, no entanto, certezas definitivas!
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