A maior reunião de filósofos do mundo
Conta o Leitor
2022-08-04 às 06h00
Texto Pedro Leucrano
Conhecemo-nos na juventude, por volta dos dezassete anos. Eu era aluno do Liceu Sá de Miranda em Braga. Mariana andava no Liceu Nacional D. Maria II na mesma cidade, conhecido como Liceu Feminino. Éramos amigos e conversávamos com frequência. Eu estava certo que ela gostava de um amigo meu que tinha conhecido num piquenique de verão, evento devidamente organizado, para que daí pudessem sair eventuais namoros. E até futuros casamentos. Quem sabe! O meu amigo era o Francisco que, na altura, já era funcionário público. Trabalhava nas Finanças num edifício improvisado para o efeito na rua de Janes em Braga. Era natural de uma aldeia das beiras. Um sortudo com as mulheres! Jovem, na casa dos vinte anos, simpático, conversador e dono de um Austin Mini, um maquinão, mesmo no início dos anos setenta do século passado. Para mim, Mariana era quase uma irmã, pois imaginava que só tinha olhos para o Francisco. Entretanto, o meu amigo foi chamado a prestar serviço militar. Desapareceu da cidade. E Mariana, da forma como falava dele, era, sem dúvida, o grande amor da sua vida. Achava-a muito simpática, doce nas palavras e de uma alegria contagiante. Ao lado de Mariana ninguém estava triste. Um sorriso espontâneo, chegando mesmo a pensar se não gostaria de mim. Loucura! Mariana gostava mesmo era do Francisco de quem falava com frequência. Mas, à medida que o tempo ia passando, as conversas sobre o Francisco escasseavam e só, de longe a longe, se falava do meu amigo. Se calhar já não gostava tanto dele como eu pensava.
No Baile do Liceu Feminino, um evento anual e marcante na juventude daquele tempo, conheci várias amigas de Mariana e depressa fui apanhado pela Judite. Depois de sairmos algumas, vá lá… bastantes vezes e, sem perder tempo, num momento de silêncio, Judite disse-me com imensa perspicácia:
- Estamos calados, mas há tanto que falar!
Fiquei surpreendido com aquela questão e perguntei com ingenuidade.
- Tanto que falar!?
- Sim. Tanto que falar.
- E sobre quê? – perguntei com inocência e curiosidade.
- Sobre nós – respondeu prontamente.
Não tive palavras. Contive a respiração e sem tempo para raciocinar, Judite atacou de novo:
- Há tanto tempo que andamos juntos! Não estará na altura de clarificarmos a nossa situação?
E calou-se. Ficámos ambos muito calados. E depois de uns bons segundos em silêncio e com voz meiga, sussurrou:
- Somos amigos!? Somos namorados!?
Voltou o silêncio. E foi preciso algum tempo para reatarmos o diálogo.
Finalmente soltámo-nos. Tivemos a tal conversa, a conversa dos momentos decisivos. E palavra puxa palavra, agora com doçura, ficámos namorados num instante. Não pude dizer não. Tão hipnotizado que estava com o momento. E selámos o início do namoro com um beijo tímido e disfarçado no Nosso Café. Este era um café emblemático da cidade de Braga, juntamente com o café Avenida e o Cinelândia. Era a Braga dos troleys que faziam o circuito Ponte/Monte d’Arcos/Ponte, do polícia sinaleiro, da Volta dos Tristes - rua do Souto/rua dos Capelistas - ao domingo, dos passeios de verão na Avenida Central à noite, com a música dos irmãos Vilaça. Imediatamente a seguir ao beijo, olhámos em redor e ninguém nos viu. Assim pensámos. Passámos a andar de mão dada. Éramos namorados.
Judite era amiga de Mariana. Eram ambas de Monção, amigas com cumplicidades, naturalmente.
Esqueci, durante uns tempos, Mariana, a minha amiga com quem gostava de conversar, a quase namorada do meu amigo Francisco que tinha ido para a tropa e de quem falava cada vez menos. Mas, quando a encontrava, dava-me bons conselhos e gostava de conversar com ela. Para mim, era uma amiga verdadeira, agora que namorava com a sua amiga Judite.
O namoro inocente com Judite durou quase dois anos, os dois anos para completar o sétimo ano do liceu. A maior parte do namoro era no Nosso Café. Mais tarde, no Copacabana na Avenida da Liberdade. E uns beijos fugidios nalguma rua deserta da cidade. E, quando o tempo o permitia, uma escapadinha até ao Bom Jesus de autocarro. Depois subíamos no elevador, uma obra prima da engenharia que utiliza o contrapeso da água para funcionar, inaugurado em 1882. Ainda chegámos a passear no Parque da Ponte e dar umas voltinhas de barco. E escondidinhos no parque, ou no Bom Jesus, trocávamos beijos ardentes. E pouco mais. Saídas à noite, só em dias muito, muito especiais, para ver algum filme que tivesse uma bonita história de amor, ou de cariz religioso, sufragada pela madre-superiora do lar onde estava hospedada. Nem sei como Judite e as amigas conseguiram autorização para ver Jesus Cristo Superstar, o musical.
Dois anos, dois verdes anos, foi o tempo que durou o namoro. Após esse período, ainda trocámos algumas cartas, mas a chama extinguia-se cada vez mais. Acabámos da forma mais natural: sem acabar com nada. Ambos percebemos que já pouco havia na nossa relação. E o tempo encarregou-se do resto. Já não havia mais que falar. Nem silêncios semelhantes ao momento em que selámos o namoro no Nosso Café.
A vida é assim mesmo. Cada um seguiu o seu caminho. Entrámos para a universidade. Eu tirei o curso de Filosofia na Universidade Católica em Braga e Judite tirou o de Filologia Românica em Coimbra. Era professora de Português.
A vida ditou o resto: casamentos, filhos, batizados, preocupações, encontros, desencontros, separações, divórcios…
O tempo voa sem nos apercebermos. É o que se chama a vida num sopro. Passaram quarenta anos. Ou mais. Muitos anos, sem dúvida.
Um dia, na Praça da República em Braga, mais conhecida por Arcada, encontrei a Margarida, colega da Faculdade de Filosofia, que já não via há alguns anos. Cumprimentámo-nos, conversámos um pouco e, a dado momento, Margarida perguntou:
- Lembras-te da Mariana?
- Mariana! Não, não estou a ver – respondi.
- A Mariana Sepúlveda. Ela fala muito de ti.
- Pois, não sei… não me lembro.
- De Monção. Professora de História.
Continua
Pedro Leucrano
31 Agosto 2022
21 Agosto 2022
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