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Página de autocrítica

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2014-08-25 às 06h00

Escritor Escritor

Decidi não acordar. A vida não era minha e a morte teimava em me desprezar. Decidi ficar. Nos despojos do que não existiu, tolhido em mim - talvez noutro de mim, resolvi que era o momento. Como quando o primeiro nevoeiro nos engole e, naquela sensação de mate, tudo aparenta resumir-se a nós e, misteriosamente, não nos achamos ali mas presos a todos os medos. Não que tivesse medo, pelo menos todos os medos ou, simplesmente, o medo... de alguma forma era atraente sentir que ignorando a ideia de fraqueza (e a sua antítese), esquecer a sua experiência, me levava a ser cada vez menos de mim.

Sem grandes ressentimentos, acredito que a amargura é o que sobra de todas as vidas e, por isso, as grandes erratas no final: cheia de folhos e floreados, o barroco em palavras e gestos numa maquilhagem exagerada, convertendo o cerimonioso em circense. A vida é vã, não uma peregrinação para a redenção. Menos o é a morte. O esforço de deslocar o sentido completo da existência para as grandes obras triunfais, como se todos tivessem predestinados a ser agentes do tempo, e a cada falha (em relação a que?) existisse um desvio ignóbil do projecto, é de uma mediocridade assombrosa. Abdico da minha posição de Atlas, em favor do abandono - que me deixem sem as grandes palavras, que me sustentarei da mesma forma que vivi: vazio.

Não sou niilista, porém conheço os meus limites. São bem mais curtos que a minha disposição física. Acredito, por isso, que tenho uma baixa tolerância à exigência ascética. Nunca invejei a ideia de super-herói ou de endeusamento aliás, de uma forma bem prática, não as entendo. O facto de se assumirem lutas e arranjos estóicas em favor de causas e guerrilhas projectadas em eventos, não raras vezes, passageiros são tão fundamentais como qualquer acontecimento quotidiano - uma causa só é nossa, só a servimos, até ao exacto momento em que somos usurpados pelos nossos próprios ideais, traídos pela fé que nos guia: como quando chegamos a casa, a meio da noite, e não podemos desfrutar do conforto da luz - ficamos desesperados envoltos nas trevas, certos que até aquele momento, talvez até ao segundo anterior, o brilho fez parte daquela divisão, das nossas vidas mas, lá fora, no outro lado da rua, o candeeiro encontra-se aceso...

A envolvência do desejo afastava-me constantemente. Construí narrativas em torno de um crer realista mas, resistente, fui-me destruindo em ambições ilusórios. Preenchi cada parte do meu sustento com fome e vício. Sabia que para lá de cada momento poderia conquistar o próximo, mesmo sentado num banco de jardim vivia nesta ânsia: encarava o castanheiro acima de mim, contava o primeiro dos frutos e, ávido, enumerava o próximo, o seguinte, insaciável pela quantidade final, reconhecendo a impossibilidade de o atingir. Sequioso, ficava comprometido na busca do sentido exacto, perpetuando aquela oração instigante - no final permanecia acomodado na insensatez da impossibilidade. Sem mágoa.

Não procurei. Egoísta, talvez. Não havia nada para alcançar, nada a abandonar. Solidifiquei os meus movimentos na dispersão dos sentimentos, fugazes, em excesso, como uma intoxicação constante - sempre sem toque, sem aproximação: a distância é a expressão mais refinada dos afectos. Não de uma forma crua, mas sem júbilo ou melancolia. Sentado numa mesa, um espaço público, a olhar para o outro lado (qualquer lado), sem barreira, fechado num círculo único. A solidão é a forma de liberdade mais pura, é o amor-próprio extremado - a impossibilidade de desencantamento.

A dormência que agora me acomoda é a mais simpática de todas as formas de existência: daqui em diante não há possibilidades - apenas um mecanicismo perfeito, para além de toda a beleza possível. Talvez o lótus azul que me angustia seja isto: saber exactamente o momento que se segue sem probabilidades, sem contestação. As formas difusas de um caleidoscópio, as misturas e reentrâncias, os labirintos fabulados, a realidade, todas as hipóteses são meros mitos que se fabricam em torno de crenças do alto de torres de marfim.
Assim fiquei, decidido a não acordar.

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