Automatocracia
Ideias
2018-02-08 às 06h00
Diz-se, dentro das frases feitas, que a próxima grande guerra será pela posse da água. Presumo que nenhum de nós se fantasie por cá e participante de tão funesto evento. Estamos inteirados, no entanto, de que por roubos de rega se travaram homens de razões, aqui e ali, com esperas e à sacholada. Coisas de povo, pensaríamos.
Paralelamente, vai ganhando forma um movimento que pretende que o acesso à agua seja consignado na carta dos direitos fundamentais da humanidade, isto é, que a água seja considerada um bem planetário, eventualmente sob jurisdição internacional. Pode parecer uma ideia obtusa, eventualmente revolucionária, mas quem garante que os estados-nação não acabem diluídos uns nos outros, fundidos em una entidade? Um por todos, todos por um.
Pequeno preâmbulo para o recente episódio da conspurcação do Tejo. Acidente? E de semelhante magnitude? Acto criminoso, passível de uma pena capital que não aplicamos? Que sentença pode um Tribunal decretar a quem volte as costas de modo tão insultuoso ao pressuposto iniludível da vida?
Crime consumado, quantos joguinhos de empurra não se encenaram! Até amostras de água para análise desapareceram. É obra! Não reforça, a ocultação, o carácter doloso do acontecimento, a atitude impenitente? Dissimular, negar, mentir, são estratagemas de que nenhum criminoso abdica, razão acrescida para que, a seu tempo, seja a Justiça inclemente.
Dupla mutilação que nos infligem: ardem, os eucaliptais, que prosperam para abastecimento da indústria do papel; com águas podres nos envenenam, quando libertam esgotos de bacias de retenção a rebentar pelas costuras. Lucro que é de uns, prejuízo que é de muitos. Levo a ironia ao ponto de imaginar executivo de topo que dite um «abre a válvula», compungido, enquanto tempera whisky velhíssimo com um cubo de gelo de glaciar imaculado, desses que a Gronelândia exporta, talhados como diamantes.
Todos sabemos que a Península Ibérica está na linha da frente da desertificação. Estamos instalados na primeira trincheira e não podemos desertar. Resistimos a enfrentar impiedoso inimigo, porque imaginámos que ele possa bater em retirada, por inesperado capricho, por indulgência ponderada. Derrogamos a resposta, porque supomos que o problema não seja para hoje, para de aqui a uma dezena anos. Boas contas faz o tolo.
Penso no assunto sem precisar de entrar no discurso do aquecimento global. Sabe, quem cultiva um certo gosto pela História, que civilizações se fundaram e eclipsaram em estreita relação com a água – abundante no ponto de partida, para escassa se fazer gerações volvidas. Quão esplendorosas não foram Uruque – berço da roda de oleiro e da biga de guerra, berço da escrita –, ou a Gonur Tepe iletrada, pacífica, do Karakum! Que mais terá acontecido então, afora um desvio natural do leito de rios? Damos a água como bem permanente, os rios como amada fiel – nada de mais incerto.
Aflige-me a inquietude de que nenhum dos governantes vislumbre muito para lá do seu mandato, para além das preocupações e benefícios que caibam ou digam respeito ao seu partido, ao seu grupo de apaniguados. E não me restrinjo a Portugal. Tenho a sensatez de reconhecer que me é fácil falar a partir de cómoda posição – esta, a ocupada por alguém que está de fora. Atalho, não obstante, dizendo, que no dia em que me atirem com as facilidades de palavra oca à cara, pois nesse instante pedirei eu os dossiers que tanto embaralham o senhor ministro do bico de obra, ou senhor secretário-de-estado do sarilho aberto.
Prefiro, entretanto, acreditar que haja mentes brilhantes suficientes para pensarem o bosque e os rios, para desenharem uma reengenharia homem-natureza, economia-recursos. Portugal não é assim tão fora de escala, tão desprovido de qualidades, que não responda favoravelmente a uma optimização que se lhe imponha.
Vivemos, nestes últimos anos, uma felicidade inaudita. Chego a crer que o próprio D. Sebastião irrompeu pelo cais das colunas com carinha de Senteno. Tudo parece correr bem – ele é a economia que quase levita, ele são os estrangeiros que nos acham uma piada tremenda, ele são as instâncias internacionais que nos confiam tarefas exigentíssimas. Mais uma forcinha, e o primeiro homem a pôr pé em Marte há de ser um Zé ou um Tone, uma Cremilde, se mulher.
E é na mó de cima que se afloram as decisões penosas.
A celulose e o eucalipto, ainda que laureados com um óscar, bom é que seja o dos papeis secundários. Contracenam bem, mas a reboque e na deixa certa. Cabe-nos, ademais, uma palavrinha no casting dos protagonistas.
Não abdiquemos dela, nem deixemos que os governantes adormeçam na forma, porque, se o fizerem, só poderá ser por conivência.
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